quinta-feira, abril 16, 2009

uma incômoda cartografia

No dia 28 de fevereiro chegamos à Almirante Brown e, depois de uma pequena investigação, encontramos o Hostal La Boca. Damián foi quem nos abriu a porta e começou a mostrar todas as dependências, detalhando os serviços e os preços. Em tudo parecia um lugar, por assim dizer, de estranhezas, algo novo por descobrir. As paredes pintadas de forma muito colorida, como os muros do Caminito, as amplas áreas comuns e o preço acessível justificaram toda a curiosidade e a vivência que eu tinha imaginado para aquele lugar, antes mesmo de conhecê-lo. A essa altura da viagem (o segundo dia, apenas!), La Boca já era, no entanto, uma zona perigosa, “bairro de imigrantes e ladrões”, assim nos advertiram alguns; “lugar feio, não vá lá!”, falaram outros, às vezes com expressão patética de susto, outras vezes com uma raiva indisfarçável. Eu, no entanto, desejei ficar, um pouco por apego aos planos iniciais, um pouco também porque de fato me senti atraído por tudo aquilo.

Com um incidente muito desagradável ocorrido um dia depois, o encanto por outros bairros e a distância considerável em relação ao metrô – ou subt, como dizem por aqui – decidimos estabelecer-nos em outro lugar. Restou, porém, um certo resentimento de minha parte em relação à forma com que alguns porteños dividiam o mapa da cidade em dois: “para aquele lado tudo vai ficando progressivamente mais feio, terrível; para este lado, pelo contrário, está tudo bem, é tranquilo”. Junto com esse eixo – a Av. Rivadavia, se bem me recordo – que corta a cidade em duas e ajuda a compor uma espécie de cartografia da marginalidade (impossível para uma cidade como Recife, por exemplo, que mais se assemelha a um mosaico perturbador onde se mesclam de forma complexa as áreas ricas e pobres), não pude deixar de notar a cadeia de significantes com que se ligavam o feio, o imigrante, o marginal, o perigoso.

De qualquer modo, como estrangeiro que parece ter sua condição escrita na testa, evito arriscar-me excessivamente, de modo que as incursões a estes territórios menos “garantidos” são feitas sempre com relativa cautela. E embora a ameaça da violência pareça, aqui, mais um dado informado pelos porteños que uma sensação desencadeada pelos lugares, de fato, nunca falta quem nos advirta sobre o caráter factual desse perigo. Na última vez em que fomos a La Boca – Tita, Sabrina e eu – um morador de rua veio, preocupado, advertir-nos de que nao fôssemos ali até a outra rua ou seríamos assaltados. Assim, categórico, não nos deixou muita margem para dúvida.

Apesar de tudo, o hostal indicado por um amigo recifense que já morou lá me parece ainda uma alternativa a considerar para o último mês na cidade e, sinceramente, não vejo nisso uma escolha heróica ou estúpida, apenas a opção que até o momento melhor corresponde às minhas reais possibilidades. Não que eu não esteja consciente da vulnerabilidade que acompanha os que estão perceptivelmente pouco familiarizados com os espaços da cidade, nem do tipo de atração que exercemos sobre os olhares locais. Onde quer que passamos as abordagens são sempre diferenciadas, e não é raro que as pessoas, mesmo os pedintes, dirijam-se a nós em três idiomas: castellano, inglês e português. Uns, mal olham para nós, já perguntam se somos brasileiros. Outros, quando nos vêem passando gritam “how are you? how are you?”. Reconhecidos como brasileiros ou confundidos com gringos norteamericanos, em ambos os casos essas minúsculas interpelações acumuladas causam-nos uma forte sensação de desconforto e de inadequação. Como se nos fossem lembrando, em cada percurso, que não pertencemos a este lugar.

Uma noite, em Palermo, estava sentado em um bar quando veio uma criança, uma menina de uns dez anos, e me ofereceu doces. Quando recusei ela chegou bem perto e ficou insistindo, baixinho: “pleeeease, pleeeease...”. Falei então, contido mas com rispidez: “¡Ya te lo dije que no!”. Não sei se gramaticalmente foi uma resposta “correta” – porque além de tudo tenho a sensação, aqui, de que minha desenvoltura com o espanhol tem sido sofrível – mas sem dúvida foi a resposta mais grosseira que eu poderia dar. Acontece que me causa um grande incômodo este tipo de interpelação em inglês, não só porque revela uma aptidão ostensiva das pessoas (inclusive dos mais excluídos) para o negócio do turismo. Também porque, no fim das contas, o que fica é a sensação de que o que se exige de mim é que eu simplesmente me adeque ao papel de turista, mesmo quando o turismo, ao menos nos termos “convencionais”, não constitui nem de longe a motivação maior da minha viagem.

Assim, a sensibilidade aguçada em relacão a certos aspectos da cidade que por vezes ficariam relegados à invisibilidade em um contato mais, digamos, trivial – como aquele que se estabelece entre seus habituais moradores – choca-se diretamente com a certeza de que o que se espera de mim é o que tenho menos: são os reais, os dólares ou, na melhor das hipóteses, os euros que como viajante eu poderia gastar e que, somados aos de tantos outros, aliviariam a carga que pesa sobre uma sociedade fraturada pela prolongada crise. Nesta configuração de papéis, o que fica fragilizado é a possibilidade de compartilhar o que quer que seja - inusitada hierarquia em que ocupo uma posição que tem muito pouco a ver com minha situação atual.

São estas questões delicadas que eu tento relatar, mesmo com o receio de que as observações possam em algum momento parecer insuficientes ou, o que é pior, contaminadas pelo mesmo elitismo que pretendem criticar. E é nesta complexa rede social onde busco situar-me, tentando não ser ingênuo mas tratando, também, de não absorver os preconceitos que recortam este espaço urbano em partes tão incomunicáveis.

domingo, abril 05, 2009

um verso

"Deseoso es aquel que huye de su madre".

De Llamado del deseoso, um poema de Lezama Lima, completo e com tradução aqui.

quarta-feira, abril 01, 2009

como não conseguir um trabalho

O tráfego de informações que vai do computador mosca-morta do apartamento até a lan house mais próxima me deixa completamente descompensado. A situação é tão problemática que os arquivos trabalhados em casa precisam transitar via e-mail, já que o meu pen drive sequer é reconhecido pela máquina. Entrando em uma semana crítica eu começo a repetir as confusões que o meu espírito de viajante cauteloso até então tinha buscado – com algum sucesso – evitar.

Eu pego o elevador e esqueço o porta-cédulas; eu fecho a porta e depois procuro o celular; eu vou ao locutório realizar uma chamada e parece que só então preciso do número do telefone; eu desço a Balcarce rumo ao centro e nem sei. Tudo seria contornável, não fosse pelo fato de que eu termino imprimindo a versão número um do currículo e apenas na hora da entrega noto que ali não consta o domicílio. Dias depois eu imprimo a versão número dois e só mais tarde lembro que da última vez já havia acrescentado à mão, a pedido da moça, o endereço do correio eletrônico. Agora, repito a entrega do currículo – o último referente à minha tentativa de ser professor de português, porque no fim das contas aqui eu preferiria trabalhar em um bar, juro – e mais uma vez lembro: o danado do e-mail que eu não coloquei. Tudo seria mais simples se eu pudesse salvar a versão atual no meu pen drive e descarregá-la no computador ali da esquina. Mas simplicidade pra quê. O negócio é acrescentar um borrão com a caneta-meio-falhando emprestada pelo senhorzinho da recepção, esse mesmo que vai dar um destino obscuro ao meu documento. Aí nessas horas eu me sinto como quase sempre: o menino amarelo que derruba os papéis no chão, apanha tudo com a mão imunda – a mesma com que mete o dedo no nariz, cutuca a casquinha de ferida – e quando vê já fez a maior sujeira e então vai passar um pedacinho de bombril pra ver se tira a mancha do papel (o que obviamente só piora a situação).

Como dessa vez não levei o envelope pardo, pergunto ao recepcionista – tentando resguardar um pouco de dignidade ao meu documento – se ele poderia prender as duas folhas soltas. Sim, penso em um grampeador, mas não sei como falar isso em castellano. Quando saio ainda olho pra trás e o vejo com as folhas soltas (e já rasuradas com o meu rabisco, vale lembrar), colando-as com um pedacinho de durex. Casquinha de ferida, é do que eu me lembro; manchinha tirada com pedacinho de bombril. Qualidade na apresentação: zero.

Ai, mais uma chance perdida.