segunda-feira, novembro 14, 2005

A pequena história dos homens de braços curtos

No mundo humano tem uma coisa chamada moda que é assim: quando se diz que algo é bonito, todo mundo gosta junto. Quando se resolve que é feio, não presta mais pra ninguém. Acontece que dia desses começou-se a desgostar de camisa de manga com a malha na medida – daquelas que cobrem o braço certinho, até o cotovelo. Um tal rapaz então começou a desconfiar que algo andava muito pequeno (ou ele muito longo): vestia, desvestia, provava, tirava, tornava a vestir mudas e mudas de roupa nova que achava em cada canto e nenhuma delas lhe servia. Enquanto isso, mais e mais gente na rua com seus braços um pouco à mostra de forma inacreditavelmente natural, harmoniosa, e ele, que já não tinha lá muita certeza das suas medidas, cada vez mais desconfiado de si: - há algo de errado aqui; ou muito esticado ou muito fino.
Matutou, matutou, “cismando na derrota incomparável”, até que lhe veio uma idéia iluminadora, dessas que são quase uma visagem, de tão claras e repentinas. Concluiu, num espanto, que o que acontecia não era moda coisa nenhuma. Lembrou de Darwin, de suas aulas, do pouco que captara das notícias da televisão, da adaptabilidade alheia, juntou uma coisa à outra e, num calafrio de quase desespero, percebeu que presenciava um desses momentos históricos únicos em que a humanidade dava um salto. Num rompante de esperteza suspeitou da rede de poder dissimulado que o circundava e desvendou: a moda é mentira, não existe. Não é culpa da moda, ela é só um disfarce. Os braços humanos é que estão mais curtos, eles é que agora só precisam estar ao alcance de um mouse, de um teclado, de um botão, de um apoio: tudo muito compacto, mínimo. Gente que é gente não tira mais coco, não sobe mais em árvore, não cobre mais ninguém de bofetada distante. Até isso: briga agora se ganha no movimento mínimo de um dedo no gatilho. A dança, então, faz tempo que ficou com menos movimentos ondulados, alongamentos sinuosos de tango... Agora é só punho levantado a noventa graus e passinho de cabeça, pescoço acompanhando. Tudo pertinho, acessível, na rapidez intimista da virtualidade, na graciosidade mínima da modernidade compacta. Carro mil com volante quase encostando no peito, movimento retrátil pra apertar botão de elevador, cotovelo inconveniente em poltrona de cinema... Viver ficou muito apertado. Adeus aos braços longos.
Atormentado, meio zonzo ainda com a perda do bonde da história, abalado pelo peso de uma sofrida fatalidade, sentida talvez apenas por aqueles que ficaram para trás na escala evolutiva, esmiuçou todo o golpe midiático que atribuiu a tendências fúteis de comportamento a responsabilidade pela mudança visual repentina que percebia nos corpos alheios. Ninguém mais o enganaria, no entanto, pois ele já tinha certeza: as roupas permaneciam as mesmas, os membros é que se haviam reduzido.
Impulsionado pela necessidade frenética de reagir, pensou na ação derradeira: compraria camisas curtíssimas, desmanchar-lhes-ia as costuras, expondo ridiculamente seu subterfúgio descarado: mangas artificialmente alongadas, mal escondendo a coloração desigual da pele durante tantos anos exposta ao sol de forma incompleta. Acima dos antebraços e cotovelos bronzeados, um pouco da pele alva que o novo modelo de camisa, adaptado ao novo tipo de braço humano, não dava mais conta de esconder. Pensou, matutou e reconsiderou a tentativa, desencorajado pelo ridículo de passear com roupas descosturadas, repuxando a malha esticada, tentando em vão torná-la maior. Um pouco mais resignado, decidiu-se por fim a adotar uma nova tática: a dos números maiores. Sairia à rua com camisas arrastando no cotovelo, incomodando a dobra do braço, passando um pouco da conta como camisas-pijama herdadas de irmãos mais velhos, na qual o corpo se perde no volume dos panos. Seriam como roupas de pivetes, criaturas-mirins, dessas que parecem esperar pelo crescimento inevitável em roupas já de adulto, crescendo dentro, já, das próprias vestimentas.
Vestiu-se e saiu por aí, apenas parcialmente aliviado, ainda um pouco cabreiro. Leva a crer, com sua escolha, que zomba da mudança, usa as roupas que bem entende, sabe já da farsa da moda e despreza a evolução humana, satisfeito em ser dos últimos longilíneos. Há quem diga, no entanto, que há um pouco também de farsa em sua artificial adaptação. Sua deselegância petulante seria na verdade - dizem as más línguas - a última tentativa angustiada de passar despercebido e não destoar tanto dessa nova raça evoluída que domina o mundo, com cotovelos tão mais perto dos ombros.

Um comentário:

Patricia Leal disse...

que fantástico Fábio!!

teus textos são tão peculiarmente teus...tão a tua cara, o teu jeito de contar as coisas ... :)

é uma delícia sair rolando aquela setinha ao lado tela e acompanhar o desabrochar de tuas palavras =))

e mais uma vez, me peguei pensando: ahhh se a literatura brasileira descobre esse menino... :)

sorte de alguns poucos que já descobriram ;)

beijão!!! :D