sábado, setembro 24, 2005

Tem um momento que começa assim: uma música vai fazendo tum, tum, tum... Ela já começa alta, mas vai crescendo ainda mais, ocupando o espaço, e parece que todo mundo começa a se mover de acordo com seu ritmo, inclusive o ambiente, que vai se envolvendo em fumaça, como aromas e incensos transformando a atmosfera do lugar. O álcool vai embaçando os olhos, líquidos sorvidos em goles generosos, e vez por outra um trago daquelas cigarrilhas que deixam um gostinho bom nos lábios. As bocas começam a proferir palavras que já têm cadência própria, e são palavras muitíssimas, desbragadas, sem sentido, apaixonadas e lançadas com ímpeto, sendo que múltiplas, vindas de todas as direções e formando um diálogo único, indiscutivelmente coeso e harmônico em sua completa falta de sentido. A música fica mais forte e, numa mudança súbita, sacode a todos, que numa sincronia quase ensaiada assumem o novo ritmo, alguns levantando das cadeiras na hora do tcharan-ran-tchum e já pegando seus parceiros, outros dançando sentados, imóveis, contemplativos, envoltos na espessa atmosfera carregada de ebriedade e cheiros quentes.
De repente não faz mais diferença fechar os olhos e tê-los abertos; todos estão verdadeiramente presentes, e se fecham os olhos o fazem apenas para desenhar melhor a cena, e quando os abrem são capazes de vislumbrar novamente aquelas imagens como que histórias de sonhos, quando tudo tem névoa, mas somente na cabeça de quem lembra.
Os sons - outrora chamados barulhos - de risadas, copos tilintando, garrafas estilhaçadas, mesas e cadeiras arrastando-se e riscando o chão, já estão perfeitamente integrados à melodia, que por sua vez já está naquela hora em que as pessoas começam a fechar os olhos e balançar a cabeça com risinho besta na cara, sendo que dessa vez não é se amostrando não – elas estão sentindo a música de verdade! Nas vozes os psius, os êpas, os oxes e as risadas cheias de pra-quê-isso se intensificam, na exata medida em que frases completas viram interjeições, lamentos viram choros exagerados, vontades viram pouca vergonha e amizades viram brindes.
Tem uma luz que vem de não sei onde e colore um pouco mais a cena, deixando tudo meio alaranjado, meio perdido em tons e nuances de natural luminosidade. Aí há momento pra tudo: pra comida que chega cheirosa e acaba ligeiro, pra outra rodada de bebida, pra confissões, para o quase impossível silêncio, e tudo vem e passa, porque tem outro momento diferente logo em seguida. A única coisa que não passa é a quentura, que deixa testas gotejando, roupas grudando, olhos lacrimejantes. Os copos que suam mancham círculos nas mesas de madeira, testemunhas de noites boêmias, alcoviteiras de encontros, cúmplices de conversas e verdades.
A cena toda continua assim, bonita, intensa, durante um bom tempo, até que tudo vai se amenizando, ficando vazio, e nada está mais suspenso no ar, novamente. Todos vão se acomodando à nova hora, reorganizam-se, saem pingando de um em um, dois em dois, até que grupos inteiros se formam e dizem adeus, olham de novo para o tempo e lembram de esquecer que são só momentos assim que valem a pena na vida.

segunda-feira, setembro 19, 2005

Eu devo ter perdido de vez a medida do que seja um blog (e do tamanho que um post deve ter). Mas enfim, só lê quem quer...
Este poema foi o que eu descobri em uma noite, numa rápida e despretensiosa leitura antes de dormir. E o que ele diz é tudo, e tão essencial, assustadoramente significativo e próximo, agora, que não tem como resumir. Tampouco poderia comentar: perderia a graça, banalizaria, seria excesso de exposição, redundância, porque está completo, claro, sinceramente exposto.
E sim, é forte...


Reconhecimento de Nêmesis
(Março de 1926)


Mão morena dele pousa
No meu braço... Estremeci.
Sou eu quando era guri,
Esse garoto feioso.
Eu era assim mesmo... Eu era
Olhos e cabelos só.
Tão vulgar que fazia dó.
Nenhuma fruta não viera
Madurando temporã.
Eu era menino mesmo,
Menino... Cabelos só,
Que à custa de muita escova
E de brilhantina,
Me ondulavam na cabeça
Que nem sapé na lagoa
Si vem brisando a manhã.

É gente que não compreendo
Os saudosos do passado
Nem os gratos... Relembrança
Porta muito raramente
Nos olhos dos ocupados.
Por isso enxergo sem gosto
A casa da minha infância,
Casão meio espandongado
Onde meu pai se acabou.
Só mesmo o que é bem de agora
Possui direito de lágrima,
Sofrer... pois sim, mas lutando
Pela replanta brotando,
Sofrer sim, mas porém nunca
Sofrer puxando memória
Pelo café que secou.

No entanto quando sucede
Mais braba a vileza humana
Arranhar na minha porta,
Não sei porque o curumim
Que eu já fui, surge e se bota
Assim rentinho de mim.
Será que é um anjo da guarda?...
Não sei não... Creio que não.
Ele faz que não me enxerga,
Que não me conhece... Mão
Morena sempre pousando
No meu ombro, aluada muito!
Até o menino inteirinho
É que nem cousa perdida
E não dá tento de si.
Possui a vida sem vida
Das sombras. É assombração.

Remexe por todo o quarto,
Não desloca nenhum traste,
Se vê bem que não faz parte
Do grupo dos meus amigos...
Volta-e-meia vem e pousa
No meu braço a mão morena...
É um silêncio atravessando
O corpo manso das cousas.

Eu também si o reconheço,
É só porque sofro agreste,
E embora grudando a vista
No livro, eu faça de conta
Que não reparo no tal,
Minha alma espia o menino
Enquanto a vista devora
Uma sopa de aletria
Feita de letras malucas.
Mas ele não vai-se embora,
E o vulto do curumim,
Sem piedade, me recorda
A minha presença em mim.

Só isso. E por causa disso
Não posso fugir de mim!
Não posso ser como os outros!
Riso não pega de enxerto,
Ser mau carece raiz...
E confessando que sofro,
Não sei si é pela coragem,
Mas tenho como uma aragem
E fico bem mais feliz.
Menino, tu me recordas
A minha presença em mim!

... A primeira vez que veio
Tive uma alegria enorme,
Gostei de ver que já era
Bem mais taludo e mais forte
Que em pequeno e que possuía
Uma alma aquecida pelo
Fogo humano do universo.
Segunda vez me irritou.
Fui covarde, fui perverso,
Peguei no tal, lhe ensinei
A indecente dança-do-ombro.
Não quis saber, foi-se embora.
E quando não o vi mais,
Sozinho, me arrependi.
A terceira vez é agora
E eu... não sei... não gosto dele
Mas não quero que o rapaz
Me deixe sozinho aqui.
Não danço mais dança-do-ombro!
Eu reconheço que sofro!

Ah! malvadeza brutaça
Dos indivíduos humanos,
Dos humanos desta praça!
Ah! Homens filhos-da-puta,
Gente bem ruim, bem odiando,
Homens bem homens, grandiosos
Na sua inveja acordada!
Grandiosos na força bruta,
Na estupidez develada!
Que heroísmo sem inocência,
O do sujeito esquecendo
Do remorso e da consciência!
Ôh! força reta, bem homem,
De ser talqualmente os mares,
E os movimentos do mundo!
Perversidades solares
Da magrém! ser matapau!
Sucuri, raio, minuano!
Forçura destes humanos,
Iguais na perversidade,
Iguais na imbecilidade,
Na calúnia, iguais no ciúme!...
Conscientemente implacáveis!
Imperiais no riso mau!...
Ota, cabra demográfico,
Jornaleiro do azedume,
Secreção de baço podre,
Alma em que a sífilis deu!
Burrice gorda, indiscreta,
Veneranda... Homo imbecilis,
Invejado pelo poeta...
Viva piolho de galinha!
Êh! homem, bosta de Deus!

Menino, sai! Eu te odeio,
Menino assombrado, feio,
Menino de mim, menino,
Menino trelento, que enches
Com teus silêncios puríssimos
A bulha dos meus desejos,
Que nem a calma da tarde
Vence a bulha da cidade...
Menino mau, que me impedes
De entrar também pro recheio
Das estatísticas... sai!
Menino vago, sem nome,
Que me embebes inteirinho
Nesta amargura visguenta
Pelos homens! Pelos homens!...

Puxa! rapazes, minha alma,
Comprida que não se acaba,
Está negra tal-e-qual
Fruta seca de goiaba!
Meus olhos tão gostadores
Nem têm mais gosto de olhar!
E pela primeira vez
O murmurejo natal
Desta vida está sem graça,
E eu só desejo uma calma
Que apagasse até meus ais!
Tudo amarga porque os homens
Me amargaram por demais!
Uma tristeza profunda,
Uma fadiga profunda,
E até, miseravelmente,
O projeto inconfessável
De parar...

Menino, sai!
Você é o estranho periódico
Que me separa do ritmo
Unânime desta vida...
E o que é pior, você relembra
Em mim o que geralmente
Se acaba ao primeiro sopro:
Você renova a presença
De mim em mim mesmo... E eu sofro.

É tarde. Vamos dormir.
Amanhã escrevo o artigo.
Respondo cartas, almoço,
Depois tomo o bonde e sigo
Para o trabalho... Depois...
Depois o mesmo... Depois,
Enquanto fora os malévolos
Se preocupam com ele,
Vorazes feito caprinos,
Nesta rua Lopes chaves
Terá um homem concertando
As cruzes do seu destino.

Mário de Andrade

quarta-feira, setembro 14, 2005

Disse o crítico a Guido Anselmi, em Oito e meio: “é preferível destruir, quando não se cria o essencial”. Também o personagem de Kundera, Ludvik, sentia prazeres quase ilícitos em cometer belas destruições.
Seria hora de retomar o gosto pelas pequenas destruições?

Parafraseando Carla Camuratti, em entrevista à Continente Multicultural de agosto: entre mortos e feridos, eu consigo me salvar de mim mesmo.
A intensidade dos últimos dias tem virado do avesso o mínimo de método e linearidade que consigo me impor. Neles, ao mesmo tempo em que nada de novo realmente acontece, minha cabeça fervilha de questões que pelo menos a princípio parecem derradeiras, conclusivas e – espera-se - determinantes de amplas e inadiáveis mudanças.
Tudo convulsiona ante os fatos agora tornados claros pelo meu cansaço em ignorá-los. E quanto trabalho não dá, encara-los de frente! E quanto risco não existe nessa lucidez (mesmo que embriagada, como no livro de Hélio Pellegrino que nunca li) e nessa fingida coragem. Porque não é coragem, é falta de opções. É o fim da artificial tolerância, da ilusão deliberada ou, quem sabe até, do benefício da dúvida, destruído pela realidade que agora é tornada visível pelo desejo de enxergá-la.
São os mesmos temas, os mesmos assuntos. Nada muda, em cada um dos desordenados caminhos a que interiormente me submeto. Mas tantas verdades! E dentre o que resultará disso tudo eu espero que se encontre um pouco de força e sensatez, para que eu possa lidar com o que sucede a essa clareza e também para que eu possa perceber que nem tudo me tirará o chão se eu puder, pelo menos, ter-me como apoio. Chegar a tanto, a tão longe – a essa aspirada auto-reconciliação – seria, isso sim, o impensado; a verdadeira ruptura.
E se a convulsão de tudo, nesse processo, me permitir o que tem sido difícil – escrever – pretendo aqui revisitar, aos poucos, antigas verdades, reprocessar sentimentos, o que pode ser entendido de muitas formas... Para mim, é apenas um pouco de vida que se pensa: vida que ainda se percebe e acredita disposta a acertar, embora sempre se admire do quanto pode perder no caminho.
A máquina

“É o mundo que você quer?
Então eu trago ele para você.”

Antônio? Não. Sempre fui da laia dos ímpares desemparelhados.

Eita livrinho simpático.Mas da próxima vez preferiria lê-lo em um lugar onde pudesse rir de verdade.
“O inevitável aconteceu.”

Sendo o “aconteceu” substantivo, e não verbo – como no livro de Sabino.
Come on in, I’ve gotta tell you what a state I’m in
I’ve gotta tell you in my loudest tones
That I started looking for a warning sign
When the truth is
I miss you
Yeah the truth is
That I miss you so

Warning sign, Coldplay

quinta-feira, setembro 08, 2005

Terminei, enfim, o livro de Joyce. Inalcançável? De modo algum. Hermético? Um pouco. O fato é que demorei a me envolver, a me identificar com a história.
Em todos os bons romances, no entanto, parece haver aquele momento que nos derruba, nos puxa para dentro de sentimentos alheios, tornando-os nossos, também, graças à possibilidade da identificação.
Esse trecho do livro me pegou, e não me canso de lê-lo:

(...)

“Escancarou a porta sem tramela do alpendre e cruzou a soleira desconjuntada da cozinha. O grupo dos seus irmãos e irmãs estava sentado em volta da mesa. O chá estava praticamente no fim, e apenas a última água a ferver posta sobre ele restava ainda ao fundo do pequeno bule e dos potes de geléia que faziam as vezes de xícaras. Restos de pão açucarado, em crostas e pedaços, escurecidos pelo chá em folha que caíra sobre eles, jaziam espalhados sobre a mesa. Pingos de chá, aqui e acolá, sobre a tábua da mesa, e uma faca, com cabo quebrado de marfim, esquecida dentro de um moedor estragado.
O triste reflexo, cinza e azul, do dia morrendo, entrava pela janela e pela porta aberta, alisando aos poucos súbito instinto de remorso no coração de Stephen. Tudo quanto a eles fora negado fora dado, sem razão, a ele, que era o mais velho; mas o lânguido clarão da tarde não mostrava em seus rostos traço algum de rancor. Sentou-se junto deles à mesa e perguntou onde estavam o pai e a mãe. Um respondeu:
- Sairamboro paraboro procuraroboro casaboro.
Mais outra mudança! Um rapaz chamado Fallon, no Belvedere, mais de uma vez lhe tinha perguntado, com uma risada maldosa, por que era que se mudavam tanto. Rugas de raiva tinham sombreado a sua testa ao ouvir de novo a risada escarninha desse curioso.
Stephen perguntou aos irmãos:
- Mas por que é que vamos nos mudar outra vez, posso saber?
- Porqueboro oboro proprietárioboro nosboro queroboro botaroboro paraboro foraboro daboro casaboro.
A voz do irmão mais novo, lá do lado afastado da chaminé, começou a cantar ‘Quanta vez na noite calma-a-a’. Um a um os outros começaram a acompanhar até que um coro cheio de vozes estava cantando. Cantariam assim horas e horas, melodia após melodia, canção após canção, até que a última claridade pálida morresse ao horizonte, até que o crepúsculo viesse com suas primeiras sombras, até que a noite caísse.
Ficou esperando por uns momentos, antes que também começasse a ária com eles. Estava escutando, com dó de espírito, o acento agudo de cansaço que havia por detrás de suas fracas e frescas vozes inocentes. Mesmo antes de se prepararem para a jornada da vida pareciam cansados, já, do caminho.
Ouvia o coro de vozes na cozinha ecoar e multiplicar-se através de uma infindável reverberação de coros de infindáveis gerações de crianças; e ouvia em todos os ecos um eco também dessa nota persistente de fadiga e de pena. Todos pareciam cansados da vida antes mesmo de entrarem nela. E se recordava que Newman tinha ouvido essa nota também nas linhas quebradas de Virgílio ‘dando expressão, como a voz da própria natureza, a essa pena e a esse cansaço na esperança ainda de melhores coisas que fossem a experiência de seus filhos e em todos os tempos.’”

Retrato do artista quando jovem, James Joyce