quarta-feira, março 09, 2005

Dancing day

Explora que eu gosto! Paga cem reais pelas minhas manhãs, minhas tardes, minha vida. Dá-me qualquer trocado, documentado, assinado em carteira, que eu vou aonde quiser, faço os trabalhos mais árduos, ou até mesmo os banais. Empresta-me qualquer título, ou o que chamam de cargo, e assim serei digno, terei futuro, prolongarei estas horas indefinidamente e poderei enxergar um pouco adiante em meus dias, mesmo com os olhos baixos.
Tenho vergonha, é verdade... Aquele ambiente, por algum motivo que não se explica, me parece hostil. Sinto-me desconfortável. No entanto irei lá, onde dizes. Formalizarei tudo, preencherei formulários, provarei minha honra em títulos: os números do meu documento são limpos – suja só a minha testa, gotejante, farta, pingando banha.
Responderei a tudo constrangido, seguirei todos os protocolos... Só não tolerarei amabilidades! Por favor, nada de gentilezas - elas sempre me deixam embaraçado. De resto nada temerei e, ao fim de tudo, colocarei lá o meu dedão sujo de tinta, trêmulo, desajeitado, deixando um borrão que é meu nome e só serve para mostrar que minha palavra não precisa de provas, apenas de formalidades. De longe, todo dedo é igual.
Aproveita também os nossos filhos, moças e rapazes soltos, perdidos, pois precisam mesmo de algo que lhes dê futuro. Afinal gastam, muitos deles, os dias a jogar bola, ver novelas, fazer sem-vergonhices. Ainda se revoltam, veja só; cabeça vazia é mesmo oficina do diabo. Convém então ganharem algum trocado. Vivem soltos e, no entanto, há os que arranjam um futuro - têm sorte! Carteira assinada, “tique” refeição e um papel do INPS que lhes dê segurança.
Mas tem a danada da revolta... Sei até de gente que encasquetou que o mundo estava errado, que não era assim, que morria-se de trabalhar - para quê? Devem ser preguiçosos, estes... São maioria, eu sei, mas vivem calados, que não são loucos de dizerem que querem ser ricos e dividir, pois sabem que os outros, sensatos, explodiriam em uma galhofa, debochando.
Eu também tenho cá dentro os meus descontentamentos. Vejo nossas crianças, muitas delas estão na escola, já (elas sabem até desenhar seus nomes), e os rapazinhos trabalham, ganham a vida como Deus ajuda... Mas por alguma inquietação tola que desconheço, sinto aqui dentro algo que não entendo e me parece, às vezes, que não é tão feliz essa oportunidade que nos dão, esse trabalho que nos ofertam... Não que seja ganância, mas parece que o dinheiro é tanto, e tanto disso nós mesmos é que construímos...! Nessas horas até sinto vontade de juntar-me aos outros, aqueles que falam em mudança, acreditam em demasia, alimentam esperanças e revoltas... Aqui mesmo há muitos. E também os que criam histórias bonitas, apresentações que parecem pintura e música vibrante que corta a tarde quando faz calor, ecoando nos cantos, em cada viela.
Mas isso tudo é tolice, então explora que eu gosto, enquanto eu espanto essa vontade incômoda de sonhar e ganho minha vida em tua casa, em tua “firma”, e assim serei grande. A vida não me ilude nem ludibria esta certeza com que vencerei esta miséria, vitorioso - como os fortes.

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Do exército de reserva - ou estoque de homens "disponíveis", a baixo custo, prontos para serem legalmente escravizados.
E também da ilusão da oportunidade do capitalismo, que incute até mesmo nos mais sofridos a crença na superação pelos méritos e a falsa certeza de que os dias melhores dependem apenas de esperteza e perseverança - deitando às costas dos explorados, além da miséria, o peso da culpa pela situação de desamparo em que vivem.
Da revolta.
Do medo.
Do desatino.

Um comentário:

Da Mata disse...

O texto está divino, mas dessa vez não foi seu estilo de escrever que me trouxe a vontade de comentar neste blog. Foram as sensações relembradas por esse texto de momentos ímpares que vivenciei no BB. Muitas vezes já conversamos sobre e quantas vezes contei causos de lá... mas agora, só agora encontrei o que eu também sentia no atendimento do BB e encontrei nesse texto.
As imagens todas discorridas por vc aqui, comoveram-me. Talvez por serem lembranças para mim, talvez pelo medo e pelo desatino.