quarta-feira, dezembro 28, 2005

pacto

Você, que tantas vezes olhou para o céu, nas noites altas da estrada, e teve um lampejo efêmero de transcendência, achou que tudo era grande e inexplicado e bom e sentiu um aconchego de colo com essa idéia épica que – você não sabia – era sua consciência de natureza aflorando, dando-lhe essa ousadia de acreditar no divino, de reconfortar-se na pequenez de um mundo gigante enquanto achava nessa mesma vastidão uma promessa de futuros cheios de si, inabaláveis em sua revelia, seu mistério de acontecer. Ousadia que era quase pecado, inibida por tua cabeça ceticamente construída para negar, cheia de falsas idéias de certeza.
Era nessas altas noites que você repousava, feliz, cansado, sem ordem para pensar nem tampouco métodos para sentir, mas eram essas mesmas noites que sufocavam, tensas, pelo gosto frustrado de liberdade engasgada. Então você sonhava mais, e mais alto, mas num sonho natimorto, sem esperança de existir, seco e sonolento. Sonhava com outras estradas, emoções e atos de independência que não sabia a que atribuir. E no dia-após-dia de caminhos retos esse desejo expansivo se reprimia, abafando o estopim impossível e carente de planos em mais um sono e mais um trago. E forjando alegrias para evocar essa felicidade irreal, enterrava as felicidades repentinas reais... E alimentando essa tristeza de bicho preso ignorava as infelicidades que não tinham lugar nenhum no mundo, dispersas, difusas... Vivia alegrias que não eram suas, e tristezas que inventava. O mais, o real, foi momento efêmero que pouco se contou.
Mas faz como naquelas noites e olha para o céu, e veja que a lua e essa brisa e essa temperaturazinha boa e ainda o possível mar que às vezes se vê, são eles todos tão reais quanto a sujeira que você aspira impassível, a casca que usa a contragosto e até o que você chama de coletivo. Percebe que para além do convívio humano há uma natureza que é concreta e orgânica como a sua matéria e ao mesmo tempo tão metafísica quanto os seus sonhos. E é assim que se percebe a impossibilidade de estar completamente sozinho - no pior, no melhor, estamos juntos, você e eu, num diálogo difícil mas cheio de sinceridade, brilho nos olhos e entendimento que à custa de muito esforço se consegue. Sim, podemos nos entender, pois eu já te acompanho há tempos: tuas antigas solidões à janela, já de todo superadas; teus segredos tão bem guardados, resvalando em ímpetos incompreendidos; teus defeitos indisfarçáveis e teu medo de regredir; teus sonhos contraditórios, desmentidos e logo em seguida reafirmados, sucessivas vezes, pela espontaneidade e mais ainda pela incapacidade em dosa-los ou guarda-los para si. Na pior, na melhor das hipóteses, olhemos sempre para essas coisas boas ao alcance, e assim mintamos, se for preciso, pois juraremos que elas serão nossas, sempre, e diremos que é tudo necessário e bom ao espírito, e reconstruiremos nossas lembranças, nossos afetos, agora que descobrimos que o bom e o mau dependem tanto da gente e que a nossa divindade boa e difícil é o Tempo. E quando aquelas dores, bem, quando elas parecerem insuportáveis demais - a saudade, a incerteza, o desejo, a esperança, essas coisas que machucam – vamos tentar pensa-las assim, como coisas, elas mudam!, elas passam! E quando a impossibilidade do que para os outros é fácil se mostrar, na sua cara, e você tiver ânsia daqueles caminhos impossíveis, vamos fazer planos de estrada, cultivar sonhos realizáveis de mundo, e se o medo de que eles jamais se realizem apertar um pouco mais o coração, prometa que haverá um esforçozinho para sorrir e eu te prometo: vou te trazer, Fábio, um ano novinho de presente!

Para ouvir: “Ce matin la”, do Air

domingo, dezembro 25, 2005

quase-fim

Ok, eu passei uns dias pensando em um jeito de acabar isso aqui de forma interessante e definitiva. Por diversos motivos, mas principalmente porque tenho me motivado a escrever sobre outras coisas que certamente cabem melhor em outro espaço que não aqui, neste “lost in solitude”. Mas em respeito a esta companhia fiel de mais de um ano e por pura falta de idéia de como começar algo diferente e de como e o quê eu quero escrever agora, vou continuando por aqui. No mais, já me acostumei ao tom meio confessional e ao estilo meio esquizofrênico desse blog em que cabe de tudo, heterogeneamente - de resenhas bestas de filmes a insanidades escritas depois de uma bebedeira.
Bom, o que dizer? É natal, mas eu que não o levei a sério cometi o erro tosco de achar que todos pensaram exatamente igual a mim. Quero dizer, eu simplesmente entrei nessa ondinha esnobe de dizer que o natal é uma data comercial, hipócrita e tabacuda, e esqueci que, para além da mercantilização e de algumas baboseiras natalinas, há quem ainda consiga fazer das comemorações, dos simbolismos, a oportunidade para coisas bonitas: presentear quem se gosta, desejar coisas boas. Eu não me dei conta disso a tempo e fui pego pelo natal “de calças curtas”, como se diz. Ganhei presentes e votos de felicidades quando já não havia tempo para presentear nem desejar nada a ninguém.
E claro, como as relações sociais são feitas também de conflito, fui surpreendido com uma alfinetada em forma de mensagem de afeto. Acho justo: ocasiões especiais também são bons momentos para apontar, aos outros, aquelas coisinhas que não gostamos e que podem virar resolução de ano novo. Desejaram que eu fosse sempre “o meu melhor”, e eu então tive medo de que tenha sido o meu pior para esta pessoa em algum dia, este ano.
Então tá, primeira resolução de ano novo: vou buscar ser sempre o meu melhor, para todo mundo. Mas quando outra ocasião especial surgir, vou dar um jeito de deixar a todos o meu pedido, junto aos votos: “O meu melhor? Vou tentar. Mas, por favor, percebam sempre...”

P.S. Feliz natal a todos. :p

segunda-feira, dezembro 12, 2005

de bob

Na madrugada, uma música para amansar a vertigem – na hora certa, quando vou dormir – vem da rua. Ela diminui um pouco minha disposição para pensar no quanto pagamos por agir de forma espontânea, por tornar nossos erros completos - por errar até o fim, até que não nos seja mais possível persistir, e só aí, então, reconhecer a necessidade de mudar. Chamam a isso teimosia, mas eu também vejo como plenitude: ser honesto até mesmo com as fraquezas quando elas são urgentes, se espalham por todo o resto e abafam o que é força e convicção, adquirindo ares de soberania. Mas há tempo pra tudo, inclusive para reconhecer os equívocos, a cegueira e – obviamente – as perdas. E a madrugada guarda também lembranças que trazem força, e elas estão, na maioria, bem ali, pela janela, se mostrando. É só uma questão de disciplina, pra não deixar que o que está mais próximo pareça excessivamente grande, insuperável. Existem idéias que trazem respostas, basta força para reavivá-las. Com elas, e com música, e com um pouco de sorte, e comigo mesmo - único parceiro e cúmplice incondicional de todas as merdas - eu passo por tudo isso, reconstruo o que der e ainda escondo minha dor.
Será que a música ajuda mesmo? Será que dá tempo recuperar… Enfim… Tudo indica que sim.

“One good thing about music
when it hits you (you feel no pain)
Oh, oh, I say, one good thing about music,
when it hits you (you feel no pain)
Hit me with music, hit me with music now…”

(E claro, um pouquinho de energia rasta também ajuda… :p)

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Precisa-se de plano infalível para ganhar o mundo.

terça-feira, novembro 29, 2005

Imagine a vida acontecendo em vinte e quatro frames por segundo. É mais ou menos nesse instante fugaz, em que a imagem vira movimento, que os sentimentos nos transpassam e mudam – ou assim eu fui levado a pensar, confundido e maravilhado pela multiplicidade de momentos com que às vezes a luz escrita e ritmada do cinema me presenteia. E a gente fica assim, sem saber o que nisso é vida, o que é engano, o que é fuga, o que é exagero. E nos perdemos indecisos diante de tantas vidas a viver, de tantos convites a ser, prontos e delineados em um estado de espírito que se insinua, dispondo-se a fazer parte de nós por algumas horas depois que vemos o último crédito e a última nota da indispensável música final ser tocada.
E a gente não sabe mais o que sente e a que se agarra nesse sonho consentido que é quase um pacto entre quem cria e quem aceita, quem encena e quem observa, quem toca e quem ouve. O coração, pequeno, fica entre a leveza de uma comédia nova-iorquina e a delicadeza de um drama adolescente, com os ouvidos inquietos passeando ora pela melodia sempre alegremente introspectiva de um jazz de Billie Holiday e a suavidade de uma cançãozinha americana boba e, no entanto, tão apropriada ao que se conta. Não consegue se decidir entre remoer um pouco mais a necessidade de agüentar e ir em frente, ou a instigante idéia de que cada pequena alegria, temor ou mistério é como tudo mais, “igual a tudo na vida”. Oscila ainda bom tempo nesse dilema até que, em uma conciliação sensata de escolhas duvidosas, experimenta pequenas doses, diversas, apostando que existir é a soma de tudo, que nada é totalmente ilusório ou absolutamente real e que em cada hora há espaço pra um pouco de comédia, drama, terror, guerra, morte, política, fantasia...
Sim, a vida é múltipla. Confesso, no entanto, que entre a alegre inteligência de um Woody Allen ou a poesia melancólica de Christine Jeffs eu preferiria, pelo menos no dia-a-dia, pelo menos na maior parte do tempo ou, como dizem, em condições normais de temperatura e pressão, a ironia, perspicácia, otimismo e bom humor do primeiro. Já deveria saber, no entanto: condições normais de temperatura e pressão não existem. Nossa cabeça está sempre fervendo ou, em alguns casos, cansada, prestes a congelar ao relento dos muitos abandonos, de nosso descuido. E nosso filme, esse que a gente vive de verdade, é quase sempre um pouco involuntário, onde no máximo temos a autonomia de inserir, mentalmente, nossas próprias músicas, aquelas que fazem crescer em importância e incrementam, com um toque especial de intensidade, os nossos fugazes instantes.

Para assistir:
Igual a tudo na vida, de Woody Allen
Chuva de verão, de Christine Jeffs

segunda-feira, novembro 21, 2005

Das angústias cotidianas

Há quem reclame pelo fato de que o dia tenha apenas vinte e quatro horas. O que dizer, então, daqueles que precisam, nesse curto período de tempo, viver duas vidas – a que querem e a que precisam? Aqueles que precisam se dividir, em sua vida dupla, e depois tentam se contentar em preencher, com alegria, os poucos espacinhos que existem entre uma violência e outra à sua própria natureza?
Aliás, às vezes eu acho que tenho na verdade três vidas: a que eu quero viver mas não posso e nem sei, a que posso viver mas não nem quero nem sei e a que eu sei viver mas não posso nem quero. E no meio disso tudo, onde, eu ?
Eu não agüento mais ter que ser muitos, inconciliáveis. Não agüento mais também andar travestido. Eu quero ser um só: completo, unitário.

...E que pelo menos a soma das minhas divergências, incoerências, instabilidades e nuances seja igual a um.

quinta-feira, novembro 17, 2005

Cinema e aspirinas e urubus e luz de puteiro e risos solitários e uniformes e casca e sonhos vazios e ruptura e amores parisienses e chofer e tese ridícula e fumaça e emoção revolucionária fantasiosa burguesa e estômago e sexo e músicas antigas e difícil renúncia e quase hora de partir e cantiga de enganar e...

“O mundo é talvez: e é só.”

segunda-feira, novembro 14, 2005

A pequena história dos homens de braços curtos

No mundo humano tem uma coisa chamada moda que é assim: quando se diz que algo é bonito, todo mundo gosta junto. Quando se resolve que é feio, não presta mais pra ninguém. Acontece que dia desses começou-se a desgostar de camisa de manga com a malha na medida – daquelas que cobrem o braço certinho, até o cotovelo. Um tal rapaz então começou a desconfiar que algo andava muito pequeno (ou ele muito longo): vestia, desvestia, provava, tirava, tornava a vestir mudas e mudas de roupa nova que achava em cada canto e nenhuma delas lhe servia. Enquanto isso, mais e mais gente na rua com seus braços um pouco à mostra de forma inacreditavelmente natural, harmoniosa, e ele, que já não tinha lá muita certeza das suas medidas, cada vez mais desconfiado de si: - há algo de errado aqui; ou muito esticado ou muito fino.
Matutou, matutou, “cismando na derrota incomparável”, até que lhe veio uma idéia iluminadora, dessas que são quase uma visagem, de tão claras e repentinas. Concluiu, num espanto, que o que acontecia não era moda coisa nenhuma. Lembrou de Darwin, de suas aulas, do pouco que captara das notícias da televisão, da adaptabilidade alheia, juntou uma coisa à outra e, num calafrio de quase desespero, percebeu que presenciava um desses momentos históricos únicos em que a humanidade dava um salto. Num rompante de esperteza suspeitou da rede de poder dissimulado que o circundava e desvendou: a moda é mentira, não existe. Não é culpa da moda, ela é só um disfarce. Os braços humanos é que estão mais curtos, eles é que agora só precisam estar ao alcance de um mouse, de um teclado, de um botão, de um apoio: tudo muito compacto, mínimo. Gente que é gente não tira mais coco, não sobe mais em árvore, não cobre mais ninguém de bofetada distante. Até isso: briga agora se ganha no movimento mínimo de um dedo no gatilho. A dança, então, faz tempo que ficou com menos movimentos ondulados, alongamentos sinuosos de tango... Agora é só punho levantado a noventa graus e passinho de cabeça, pescoço acompanhando. Tudo pertinho, acessível, na rapidez intimista da virtualidade, na graciosidade mínima da modernidade compacta. Carro mil com volante quase encostando no peito, movimento retrátil pra apertar botão de elevador, cotovelo inconveniente em poltrona de cinema... Viver ficou muito apertado. Adeus aos braços longos.
Atormentado, meio zonzo ainda com a perda do bonde da história, abalado pelo peso de uma sofrida fatalidade, sentida talvez apenas por aqueles que ficaram para trás na escala evolutiva, esmiuçou todo o golpe midiático que atribuiu a tendências fúteis de comportamento a responsabilidade pela mudança visual repentina que percebia nos corpos alheios. Ninguém mais o enganaria, no entanto, pois ele já tinha certeza: as roupas permaneciam as mesmas, os membros é que se haviam reduzido.
Impulsionado pela necessidade frenética de reagir, pensou na ação derradeira: compraria camisas curtíssimas, desmanchar-lhes-ia as costuras, expondo ridiculamente seu subterfúgio descarado: mangas artificialmente alongadas, mal escondendo a coloração desigual da pele durante tantos anos exposta ao sol de forma incompleta. Acima dos antebraços e cotovelos bronzeados, um pouco da pele alva que o novo modelo de camisa, adaptado ao novo tipo de braço humano, não dava mais conta de esconder. Pensou, matutou e reconsiderou a tentativa, desencorajado pelo ridículo de passear com roupas descosturadas, repuxando a malha esticada, tentando em vão torná-la maior. Um pouco mais resignado, decidiu-se por fim a adotar uma nova tática: a dos números maiores. Sairia à rua com camisas arrastando no cotovelo, incomodando a dobra do braço, passando um pouco da conta como camisas-pijama herdadas de irmãos mais velhos, na qual o corpo se perde no volume dos panos. Seriam como roupas de pivetes, criaturas-mirins, dessas que parecem esperar pelo crescimento inevitável em roupas já de adulto, crescendo dentro, já, das próprias vestimentas.
Vestiu-se e saiu por aí, apenas parcialmente aliviado, ainda um pouco cabreiro. Leva a crer, com sua escolha, que zomba da mudança, usa as roupas que bem entende, sabe já da farsa da moda e despreza a evolução humana, satisfeito em ser dos últimos longilíneos. Há quem diga, no entanto, que há um pouco também de farsa em sua artificial adaptação. Sua deselegância petulante seria na verdade - dizem as más línguas - a última tentativa angustiada de passar despercebido e não destoar tanto dessa nova raça evoluída que domina o mundo, com cotovelos tão mais perto dos ombros.

quarta-feira, novembro 09, 2005

São muitas, muitas coisas... Mas, por ora, isso diz tudo.

...E sabe lá Deus por que, lembrei da minha família ouvindo essa música:

A minor incident - Badly Drawn Boy

There's nothing I could say
To make you try to feel okay
And nothing you could do
To stop me feeling the way I do
And if the chance should happen
That I never see you again
Just remember that I'll always love you

I'd be a better person
On the other side I'm sure
You'd find a way to help yourself
And find another door
To shrug off a minor incident
And make us both feel proud
I just wish I could be there to see you through

You always were the one
To make us stand out in the crowd
Though every once upon a while
Your head was in a cloud
There's nothing you could never do
To ever let me down
And remember that I'll always love you

segunda-feira, outubro 31, 2005

segunda-feira, outubro 24, 2005

A certa altura da noite, ouso imaginar que se pensou junto:

“Tem uma poesia acontecendo
em cada esquina,
em cada mesa suja.”

Creio que ouvi isso no ar: é verdade? Natha, tu falou isso aquele dia no bar, em Olinda (os dois primeiros versos)?
Ponho as aspas porque não sei quem disse: se Nathalia, se outra pessoa, se todos nós em conversa dispersa ou muda, ou se foi desses espíritos malassombrados em que não acredito, mas que há quem jure que andam em bares e locais malditos, rondando mesas, espreitando vidas largadas.

...


Aonde é que esses dias vão chegar? Onde o freio? Onde todos nós imunes ao que está subentendido mas que facilmente se percebe? Onde aquela história do “se não ajuda, pelo menos não atrapalha”? Onde a explicação para esse peso que tem o vazio do ordinário, habitual mas cheio de complexidade disfarçada?

Aqui, só o dilema da certeza.

Sou só eu ou essa aparente normalidade que a gente nunca sabe se é aparente mesmo só complica mais as coisas, dando margem à possibilidade da dúvida?

Nada acontece com tudo isso que vivemos e, no entanto, parece que é sempre o limite, e o próximo grau é o ponto de ebulição. Alguém mais está com a cabeça fervendo diante do que não é dito?

A insustentável leveza do ser. Ou: estamos todos lascados. :p

...

Lembrei-me do Fernando Sabino, em carta agoniada pro Hélio, daí fui lá ver. Era assim:

“Alguma coisa de novo se anuncia, eu vejo, eu sei, eu juro que alguma coisa de novo vai surgir para o mundo, porque senão o que temos de melhor a fazer é mesmo comer e dormir. Nem ao menos morrer será preciso.”
Cartas na mesa, sendo esta de 16/10/45

Eu sinto parecido, mas rearranjo as idéias: algo de novo acontece, mas talvez o melhor seja mesmo dormir, porque só a ameaça do que pode vir a ser já dá um arrepio na espinha. Já escrevi muitos textos apaixonados a respeito da vontade de mudar. Hoje não. Eu posso: hoje é pelo imutável - porque o que está para acontecer parece ser cada vez menos promissor, então hoje a paixão é pelo que se fantasia.

“Sabia que sua imediata obrigação era o sonho...”
Jorge Luís Borges, em um dos muros da Oficina de Brennand. E isso resume muito.

quarta-feira, outubro 12, 2005

A palavra é vertigem. Fui ver no dicionário. Aurélio: edição velha, amarelecida, faltava a capa e também algumas folhas. Por sorte, a que hoje procurei estava lá: Vertigem sf. 1. Estado mórbido em que a pessoa tem a impressão de que tudo lhe gira em torno; tonteira. 2. Desmaio. 3. Desvario. Teria algo a ver com egocentrismo? Delírios? Mal estar físico? Hummm... tem a ver. Mas não é suficiente.
Ruth Rocha: dicionário que desavergonhadamente pedi à minha tia, professora da rede pública (espero que ela tenha conseguido outro, depois): Vertigem sf. 1. Tontura; desmaio. 2. Desvario; tentação súbita. Tentação súbita? Opa, isso já é diferente. Mas a isso eu chamo de outras coisas.
Creio que foi Milan Kundera quem disse algo que pra mim foi a expressão definitiva do significado deste vocábulo, e que resumiu, consigo, todo um estado de espírito que, de outro modo, demandaria centenas de palavras para que se esboçasse uma explicação, ainda assim frustrada. Então, vamos lá. Google: o destino de todos nós, nesses tempos pós-anos-2000. Dentre duas centenas de páginas, uma que parece transcrever exatamente o que lembro ter lido, há uns cinco anos atrás: "...vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É o vazio lá embaixo que nos chama e nos atrai, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados". Ainda: “é a voz do vazio embaixo de nós, é a atração pela queda, é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza".
Vertigem é o desejo de cair. Quando você está no alto, prestes a despencar, não é o temor que você sente: a isso chamamos medo. Tampouco o sentimento de quem não tem mais forças para se segurar: seria isso apenas fraqueza. Vertigem, pois, seria algo como aqueles minutos em que, suspenso no ar, você por um minuto sente o impulso de afrouxar os dedos, soltar o único apoio, o único suporte que te protege, e deixar-se precipitar, de olhos fechados, rumo à conseqüência certa da sua queda. Quando, desacreditado de suas forças, sucumbindo ao medo que o apavora, você sente o impulso, por um instante irresistível, de desistir; antecipa tragicamente a previsão de que a queda é inevitável, de que o esforço machuca mais, ou que – na mais lamentável conclusão –, ele não vale a pena.
É então que você se surpreende com o fio tênue que ainda te mantém suspenso, meio sem chão, mas ainda a salvo. É então que te causa espanto o pouco que te segura da queda, que te afasta o desejo. E você se pergunta se é força, esperança ou o comodismo e a inércia que te fazem continuar se segurando...

Every time I rise I see you falling
Can you find me space inside your bleeding heart
Every time I rise I see you falling
Can you find me space
Find me space

It's in your reach
Concentrate
It's in your reach
Concentrate

Passive agressive, Placebo

terça-feira, outubro 11, 2005

La plage

Ousar o pequeno, o esquecido. A ousadia dos pés descalços, das roupas puídas, da cabeça recostada ao vento. O querer dos tranqüilos, da beleza, da terra.
Ousar-se existência que não se trai, que não se agride pelo sintético, pelo artificial, concreto que a carne esfacela.
Suor e trabalho - desejar-se trabalho digno, descoberta fraterna de construir junto, de se pensar coletivo, comover-se porque humano.
Desprendimento de não ter, do não à superação irrefletida, do conhecimento medido, mastigado aos poucos. A graça de ver, e não apenas ver-se, cada nova hora construída no leve espaço que rodeia. E ser parte, integrar, em vez de apenas meio, meta.
Ouvir. Ouvir e ouvir-se. - Observa minha descoberta, que é a morte: vamos morrer. Temos um destino, e tanto medo... E tanta fascinação.
Há um mistério - um segredo, diria até... talvez... Pensa melhor nesse segredo: negar é só mais uma forma de incerteza...
Chamar de karma ou chamar de sorte – é só mais um jeito de celebrar o inexplicável. Mas deixa-me ser ouvido, que eu também escuto. Faço força, é difícil, mas aos poucos escuto: a rua cheia de lamentos, os rostos cheios de perguntas, as linhas cheias de harmonia, os vazios repletos de convite à calma.
Ver a linha da praia, a areia, o sal. Não há nada que explique, mas está tudo aí. Chamar de karma ou chamar de destino, criar nomes, entidades, desfiar mitos, elaborar códigos: nada é suficiente, mas muito pouco também é necessário para se perceber que não vale o desespero, a tirana necessidade de planos, a corrida para preservar o insustentável. Lamentar com sinceridade o que vai embora, mas lembrar o muito que já foi e ainda assim permanece no novo que se criou.
Aprender a descobrir em tudo algo próximo ao que há na praia, em que toda alegria vai subitamente atiçando um estado de espírito eufórico, sensual, urgente e ébrio que faz sentir que se está vivendo.
Ousar fazer o que conforta, que deixa no meio de um aconchego, como quando se encolhe debaixo de cobertas à espera do sono.
São anos de desaprendizado, muitos horrores a vencer. Mas sempre é tempo de fazer gentilezas e acreditar: pés descalços, roupas puídas e fragmentos de música nos lábios.

Para ouvir: Alpha Petulay

sábado, outubro 08, 2005

“... A conscientização não pode existir fora da ‘práxis’, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens.
Por isso mesmo, conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com o material que a vida lhes oferece...”

“Para mim o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão a utopia é também um compromisso histórico.”

Paulo Freire

segunda-feira, outubro 03, 2005

"(...) alguém baixou com suavidade minhas pálpebras, me levando, desprevenido, a consentir num sono ligeiro, eu que não sabia que o amor requer vigília(...)"
Raduan Nassar - Lavoura Arcaica.

domingo, outubro 02, 2005



“Sim, a imagem é felicidade, mas junto dela está o vazio, e toda a força da imagem só pode se expressar através dela.”

“Tentem ver alguma coisa. Tentem imaginar alguma coisa. No primeiro caso dizemos: ‘olhe’. E no segundo: ‘feche os olhos’.”

“Dizem que os fatos falam por si, e Céline dizia: ‘infelizmente, não por muito tempo’. Já dizia isso em 1936... Porque o campo do texto já havia coberto o campo da visão.”

“Em 1938, Heisenberg e Bohr passeiam pelo interior da Dinamarca. Eles passam diante do castelo de Elsinore. O sábio alemão diz: ‘esse castelo não tem nada de extraordinário’. O físico dinamarquês responde: ‘sim, mas basta dizer – o castelo de Hamlet – e ele se torna extraordinário’. Elsinore: o real. Hamlet: o imaginário. Campo e contracampo. Imaginário: certeza. Real: incerteza.”

“O princípio do cinema: ir até a luz e aponta-la para a nossa noite. Nossa música.”

Godard, ele mesmo em uma reflexão sobre o olhar, em uma passagem do filme Nossa Música



Esta passagem é uma daquelas que fazem toda a diferença na história do cinema. Música, silêncio, imagens, escuridão, palavras convertidas por uma intérprete, ruídos de quem assiste à conferência: Godard orquestra tudo no momento talvez mais importante do seu novo filme, em que subverte os limites desta arte, misturando ficção e documentário, registro político, exposição de idéias e narrativa tênue para mostrar-se, mais uma vez, um cineasta que, acima de tudo, pensa sua arte e continua obstinado em atribuir-lhe um sentido político, contestatório e reflexivo. Só por trazer intrínseco, em seus filmes, este objetivo, eu já tenho o maior respeito pela sua obra. Não é fácil: Godard é um dos cineastas mais atacados da história do cinema, rejeitado como chato e insuportável pelos que buscam nos filmes unicamente diversão e histórias fáceis, mas igualmente detratado pelos mais críticos, que vêem em Godard uma espécie de símbolo da pretensão e da pseudo-intelectualidade. De fato, seu nome é dos mais banalizados neste meio - citado exaustivamente por pessoas metidas a cult e intelectualóides, ridicularizado por quem ri das pretensões estéticas e políticas tão essenciais ao trabalho de um cineasta.
Há ainda outro aspecto que gosto muito no conceito que move os filmes de Godard: ao contrário da maioria dos intelectuais, dos nomes influentes nos mais diversos campos da cultura, que adotaram o tom irreverente e debochado, a autoironia, a negação absoluta e o politicamente incorreto como elementos predominantes em suas idéias e sinônimos de senso crítico, Godard ainda defende uma ideologia e, sem nunca ser simplista ou vazio, não tem medo de defende-la obstinadamente e assumir um tom por vezes quase panfletário. Gosto inclusive dos seus excessos, com os quais demonstra ter pelas idéias que defende uma paixão, infelizmente, cada vez mais rara nesses tempos de “pós-modernidade”.
Neste novo filme, crítica feroz a todas as formas de guerra, Godard pensa Sarajevo, os conflitos entre os povos israelense e palestino, Kosovo e, de modo geral, todas as formas de violência, tendo como foco de interesse a questão da imagem, de como estes fatos são processados e absorvidos, dada a multiplicidade de interesses e concepções políticas que permeiam o seu registro. Mais: ele pensa a guerra no âmbito individual, onde predomina a perplexidade; seus efeitos nas nações e na identidade dos povos; a relação entre vencedores e vencidos e o interesse histórico que geralmente dá voz a apenas um dos lados; a auto-destruição e a violência como fraquezas humanas; e por fim, a necessidade de redenção. O filme divide-se em três partes, Inferno, Purgatório e Paraíso, e algumas de suas passagens são de uma contundência perturbadora, sem, no entanto, recorrerem à agressividade e à banalização. Afinal, este é também um dos objetivos primordiais de Godard com sua obra: ele ataca a banalização e a manipulação da imagem como formas políticas de anestesiar, acostumar o olhar ao absurdo da violência e inibir a percepção crítica da realidade que massacra milhões, em nome de interesses injustificáveis. “Matar um homem para defender uma idéia não é defender uma idéia, é matar um homem”, dispara, logo no início.

Mais uma vez, acaba sobrando para os americanos: desde o início, em que faz uma colagem de cenas reais de guerra com imagens do cinema americano, em que o massacre dos povos indígenas é transformado por Hollywood em épicos de aventura, até a já mencionada cena da conferência, em que Godard mostra a fotografia de uma cidade em ruínas, pergunta se alguém sabe que fato a imagem retrata e, dentre respostas como Sarajevo, Stalingrado, Hiroshima, responde: Richmond, Virginia, 1865. Guerra Civil Americana. Denúncia da estupidez humana que esfacela sua própria nação. Ataque à agressividade e à ânsia de guerra ainda tão estimulada pelos líderes estadunidenses e que causa sua auto-destruição. Godard também não perde a oportunidade de mostrar a bandeira americana, em sua orquestração do Inferno, e arremata sua crítica ácida ao mostrar o Paraíso sendo guardado pela marinha americana.
A contundência do seu ataque, no entanto, não perde jamais a delicadeza, ao falar da culpa, da melancolia, da fragilidade da vida humana, da perplexidade e do modo como buscamos a redenção e, finalmente, a paz com a qual sonhamos.

“E a libertação?
E a vitória?
Este será meu martírio
Esta noite estarei no paraíso.”

sábado, setembro 24, 2005

Tem um momento que começa assim: uma música vai fazendo tum, tum, tum... Ela já começa alta, mas vai crescendo ainda mais, ocupando o espaço, e parece que todo mundo começa a se mover de acordo com seu ritmo, inclusive o ambiente, que vai se envolvendo em fumaça, como aromas e incensos transformando a atmosfera do lugar. O álcool vai embaçando os olhos, líquidos sorvidos em goles generosos, e vez por outra um trago daquelas cigarrilhas que deixam um gostinho bom nos lábios. As bocas começam a proferir palavras que já têm cadência própria, e são palavras muitíssimas, desbragadas, sem sentido, apaixonadas e lançadas com ímpeto, sendo que múltiplas, vindas de todas as direções e formando um diálogo único, indiscutivelmente coeso e harmônico em sua completa falta de sentido. A música fica mais forte e, numa mudança súbita, sacode a todos, que numa sincronia quase ensaiada assumem o novo ritmo, alguns levantando das cadeiras na hora do tcharan-ran-tchum e já pegando seus parceiros, outros dançando sentados, imóveis, contemplativos, envoltos na espessa atmosfera carregada de ebriedade e cheiros quentes.
De repente não faz mais diferença fechar os olhos e tê-los abertos; todos estão verdadeiramente presentes, e se fecham os olhos o fazem apenas para desenhar melhor a cena, e quando os abrem são capazes de vislumbrar novamente aquelas imagens como que histórias de sonhos, quando tudo tem névoa, mas somente na cabeça de quem lembra.
Os sons - outrora chamados barulhos - de risadas, copos tilintando, garrafas estilhaçadas, mesas e cadeiras arrastando-se e riscando o chão, já estão perfeitamente integrados à melodia, que por sua vez já está naquela hora em que as pessoas começam a fechar os olhos e balançar a cabeça com risinho besta na cara, sendo que dessa vez não é se amostrando não – elas estão sentindo a música de verdade! Nas vozes os psius, os êpas, os oxes e as risadas cheias de pra-quê-isso se intensificam, na exata medida em que frases completas viram interjeições, lamentos viram choros exagerados, vontades viram pouca vergonha e amizades viram brindes.
Tem uma luz que vem de não sei onde e colore um pouco mais a cena, deixando tudo meio alaranjado, meio perdido em tons e nuances de natural luminosidade. Aí há momento pra tudo: pra comida que chega cheirosa e acaba ligeiro, pra outra rodada de bebida, pra confissões, para o quase impossível silêncio, e tudo vem e passa, porque tem outro momento diferente logo em seguida. A única coisa que não passa é a quentura, que deixa testas gotejando, roupas grudando, olhos lacrimejantes. Os copos que suam mancham círculos nas mesas de madeira, testemunhas de noites boêmias, alcoviteiras de encontros, cúmplices de conversas e verdades.
A cena toda continua assim, bonita, intensa, durante um bom tempo, até que tudo vai se amenizando, ficando vazio, e nada está mais suspenso no ar, novamente. Todos vão se acomodando à nova hora, reorganizam-se, saem pingando de um em um, dois em dois, até que grupos inteiros se formam e dizem adeus, olham de novo para o tempo e lembram de esquecer que são só momentos assim que valem a pena na vida.

segunda-feira, setembro 19, 2005

Eu devo ter perdido de vez a medida do que seja um blog (e do tamanho que um post deve ter). Mas enfim, só lê quem quer...
Este poema foi o que eu descobri em uma noite, numa rápida e despretensiosa leitura antes de dormir. E o que ele diz é tudo, e tão essencial, assustadoramente significativo e próximo, agora, que não tem como resumir. Tampouco poderia comentar: perderia a graça, banalizaria, seria excesso de exposição, redundância, porque está completo, claro, sinceramente exposto.
E sim, é forte...


Reconhecimento de Nêmesis
(Março de 1926)


Mão morena dele pousa
No meu braço... Estremeci.
Sou eu quando era guri,
Esse garoto feioso.
Eu era assim mesmo... Eu era
Olhos e cabelos só.
Tão vulgar que fazia dó.
Nenhuma fruta não viera
Madurando temporã.
Eu era menino mesmo,
Menino... Cabelos só,
Que à custa de muita escova
E de brilhantina,
Me ondulavam na cabeça
Que nem sapé na lagoa
Si vem brisando a manhã.

É gente que não compreendo
Os saudosos do passado
Nem os gratos... Relembrança
Porta muito raramente
Nos olhos dos ocupados.
Por isso enxergo sem gosto
A casa da minha infância,
Casão meio espandongado
Onde meu pai se acabou.
Só mesmo o que é bem de agora
Possui direito de lágrima,
Sofrer... pois sim, mas lutando
Pela replanta brotando,
Sofrer sim, mas porém nunca
Sofrer puxando memória
Pelo café que secou.

No entanto quando sucede
Mais braba a vileza humana
Arranhar na minha porta,
Não sei porque o curumim
Que eu já fui, surge e se bota
Assim rentinho de mim.
Será que é um anjo da guarda?...
Não sei não... Creio que não.
Ele faz que não me enxerga,
Que não me conhece... Mão
Morena sempre pousando
No meu ombro, aluada muito!
Até o menino inteirinho
É que nem cousa perdida
E não dá tento de si.
Possui a vida sem vida
Das sombras. É assombração.

Remexe por todo o quarto,
Não desloca nenhum traste,
Se vê bem que não faz parte
Do grupo dos meus amigos...
Volta-e-meia vem e pousa
No meu braço a mão morena...
É um silêncio atravessando
O corpo manso das cousas.

Eu também si o reconheço,
É só porque sofro agreste,
E embora grudando a vista
No livro, eu faça de conta
Que não reparo no tal,
Minha alma espia o menino
Enquanto a vista devora
Uma sopa de aletria
Feita de letras malucas.
Mas ele não vai-se embora,
E o vulto do curumim,
Sem piedade, me recorda
A minha presença em mim.

Só isso. E por causa disso
Não posso fugir de mim!
Não posso ser como os outros!
Riso não pega de enxerto,
Ser mau carece raiz...
E confessando que sofro,
Não sei si é pela coragem,
Mas tenho como uma aragem
E fico bem mais feliz.
Menino, tu me recordas
A minha presença em mim!

... A primeira vez que veio
Tive uma alegria enorme,
Gostei de ver que já era
Bem mais taludo e mais forte
Que em pequeno e que possuía
Uma alma aquecida pelo
Fogo humano do universo.
Segunda vez me irritou.
Fui covarde, fui perverso,
Peguei no tal, lhe ensinei
A indecente dança-do-ombro.
Não quis saber, foi-se embora.
E quando não o vi mais,
Sozinho, me arrependi.
A terceira vez é agora
E eu... não sei... não gosto dele
Mas não quero que o rapaz
Me deixe sozinho aqui.
Não danço mais dança-do-ombro!
Eu reconheço que sofro!

Ah! malvadeza brutaça
Dos indivíduos humanos,
Dos humanos desta praça!
Ah! Homens filhos-da-puta,
Gente bem ruim, bem odiando,
Homens bem homens, grandiosos
Na sua inveja acordada!
Grandiosos na força bruta,
Na estupidez develada!
Que heroísmo sem inocência,
O do sujeito esquecendo
Do remorso e da consciência!
Ôh! força reta, bem homem,
De ser talqualmente os mares,
E os movimentos do mundo!
Perversidades solares
Da magrém! ser matapau!
Sucuri, raio, minuano!
Forçura destes humanos,
Iguais na perversidade,
Iguais na imbecilidade,
Na calúnia, iguais no ciúme!...
Conscientemente implacáveis!
Imperiais no riso mau!...
Ota, cabra demográfico,
Jornaleiro do azedume,
Secreção de baço podre,
Alma em que a sífilis deu!
Burrice gorda, indiscreta,
Veneranda... Homo imbecilis,
Invejado pelo poeta...
Viva piolho de galinha!
Êh! homem, bosta de Deus!

Menino, sai! Eu te odeio,
Menino assombrado, feio,
Menino de mim, menino,
Menino trelento, que enches
Com teus silêncios puríssimos
A bulha dos meus desejos,
Que nem a calma da tarde
Vence a bulha da cidade...
Menino mau, que me impedes
De entrar também pro recheio
Das estatísticas... sai!
Menino vago, sem nome,
Que me embebes inteirinho
Nesta amargura visguenta
Pelos homens! Pelos homens!...

Puxa! rapazes, minha alma,
Comprida que não se acaba,
Está negra tal-e-qual
Fruta seca de goiaba!
Meus olhos tão gostadores
Nem têm mais gosto de olhar!
E pela primeira vez
O murmurejo natal
Desta vida está sem graça,
E eu só desejo uma calma
Que apagasse até meus ais!
Tudo amarga porque os homens
Me amargaram por demais!
Uma tristeza profunda,
Uma fadiga profunda,
E até, miseravelmente,
O projeto inconfessável
De parar...

Menino, sai!
Você é o estranho periódico
Que me separa do ritmo
Unânime desta vida...
E o que é pior, você relembra
Em mim o que geralmente
Se acaba ao primeiro sopro:
Você renova a presença
De mim em mim mesmo... E eu sofro.

É tarde. Vamos dormir.
Amanhã escrevo o artigo.
Respondo cartas, almoço,
Depois tomo o bonde e sigo
Para o trabalho... Depois...
Depois o mesmo... Depois,
Enquanto fora os malévolos
Se preocupam com ele,
Vorazes feito caprinos,
Nesta rua Lopes chaves
Terá um homem concertando
As cruzes do seu destino.

Mário de Andrade

quarta-feira, setembro 14, 2005

Disse o crítico a Guido Anselmi, em Oito e meio: “é preferível destruir, quando não se cria o essencial”. Também o personagem de Kundera, Ludvik, sentia prazeres quase ilícitos em cometer belas destruições.
Seria hora de retomar o gosto pelas pequenas destruições?

Parafraseando Carla Camuratti, em entrevista à Continente Multicultural de agosto: entre mortos e feridos, eu consigo me salvar de mim mesmo.
A intensidade dos últimos dias tem virado do avesso o mínimo de método e linearidade que consigo me impor. Neles, ao mesmo tempo em que nada de novo realmente acontece, minha cabeça fervilha de questões que pelo menos a princípio parecem derradeiras, conclusivas e – espera-se - determinantes de amplas e inadiáveis mudanças.
Tudo convulsiona ante os fatos agora tornados claros pelo meu cansaço em ignorá-los. E quanto trabalho não dá, encara-los de frente! E quanto risco não existe nessa lucidez (mesmo que embriagada, como no livro de Hélio Pellegrino que nunca li) e nessa fingida coragem. Porque não é coragem, é falta de opções. É o fim da artificial tolerância, da ilusão deliberada ou, quem sabe até, do benefício da dúvida, destruído pela realidade que agora é tornada visível pelo desejo de enxergá-la.
São os mesmos temas, os mesmos assuntos. Nada muda, em cada um dos desordenados caminhos a que interiormente me submeto. Mas tantas verdades! E dentre o que resultará disso tudo eu espero que se encontre um pouco de força e sensatez, para que eu possa lidar com o que sucede a essa clareza e também para que eu possa perceber que nem tudo me tirará o chão se eu puder, pelo menos, ter-me como apoio. Chegar a tanto, a tão longe – a essa aspirada auto-reconciliação – seria, isso sim, o impensado; a verdadeira ruptura.
E se a convulsão de tudo, nesse processo, me permitir o que tem sido difícil – escrever – pretendo aqui revisitar, aos poucos, antigas verdades, reprocessar sentimentos, o que pode ser entendido de muitas formas... Para mim, é apenas um pouco de vida que se pensa: vida que ainda se percebe e acredita disposta a acertar, embora sempre se admire do quanto pode perder no caminho.
A máquina

“É o mundo que você quer?
Então eu trago ele para você.”

Antônio? Não. Sempre fui da laia dos ímpares desemparelhados.

Eita livrinho simpático.Mas da próxima vez preferiria lê-lo em um lugar onde pudesse rir de verdade.
“O inevitável aconteceu.”

Sendo o “aconteceu” substantivo, e não verbo – como no livro de Sabino.
Come on in, I’ve gotta tell you what a state I’m in
I’ve gotta tell you in my loudest tones
That I started looking for a warning sign
When the truth is
I miss you
Yeah the truth is
That I miss you so

Warning sign, Coldplay

quinta-feira, setembro 08, 2005

Terminei, enfim, o livro de Joyce. Inalcançável? De modo algum. Hermético? Um pouco. O fato é que demorei a me envolver, a me identificar com a história.
Em todos os bons romances, no entanto, parece haver aquele momento que nos derruba, nos puxa para dentro de sentimentos alheios, tornando-os nossos, também, graças à possibilidade da identificação.
Esse trecho do livro me pegou, e não me canso de lê-lo:

(...)

“Escancarou a porta sem tramela do alpendre e cruzou a soleira desconjuntada da cozinha. O grupo dos seus irmãos e irmãs estava sentado em volta da mesa. O chá estava praticamente no fim, e apenas a última água a ferver posta sobre ele restava ainda ao fundo do pequeno bule e dos potes de geléia que faziam as vezes de xícaras. Restos de pão açucarado, em crostas e pedaços, escurecidos pelo chá em folha que caíra sobre eles, jaziam espalhados sobre a mesa. Pingos de chá, aqui e acolá, sobre a tábua da mesa, e uma faca, com cabo quebrado de marfim, esquecida dentro de um moedor estragado.
O triste reflexo, cinza e azul, do dia morrendo, entrava pela janela e pela porta aberta, alisando aos poucos súbito instinto de remorso no coração de Stephen. Tudo quanto a eles fora negado fora dado, sem razão, a ele, que era o mais velho; mas o lânguido clarão da tarde não mostrava em seus rostos traço algum de rancor. Sentou-se junto deles à mesa e perguntou onde estavam o pai e a mãe. Um respondeu:
- Sairamboro paraboro procuraroboro casaboro.
Mais outra mudança! Um rapaz chamado Fallon, no Belvedere, mais de uma vez lhe tinha perguntado, com uma risada maldosa, por que era que se mudavam tanto. Rugas de raiva tinham sombreado a sua testa ao ouvir de novo a risada escarninha desse curioso.
Stephen perguntou aos irmãos:
- Mas por que é que vamos nos mudar outra vez, posso saber?
- Porqueboro oboro proprietárioboro nosboro queroboro botaroboro paraboro foraboro daboro casaboro.
A voz do irmão mais novo, lá do lado afastado da chaminé, começou a cantar ‘Quanta vez na noite calma-a-a’. Um a um os outros começaram a acompanhar até que um coro cheio de vozes estava cantando. Cantariam assim horas e horas, melodia após melodia, canção após canção, até que a última claridade pálida morresse ao horizonte, até que o crepúsculo viesse com suas primeiras sombras, até que a noite caísse.
Ficou esperando por uns momentos, antes que também começasse a ária com eles. Estava escutando, com dó de espírito, o acento agudo de cansaço que havia por detrás de suas fracas e frescas vozes inocentes. Mesmo antes de se prepararem para a jornada da vida pareciam cansados, já, do caminho.
Ouvia o coro de vozes na cozinha ecoar e multiplicar-se através de uma infindável reverberação de coros de infindáveis gerações de crianças; e ouvia em todos os ecos um eco também dessa nota persistente de fadiga e de pena. Todos pareciam cansados da vida antes mesmo de entrarem nela. E se recordava que Newman tinha ouvido essa nota também nas linhas quebradas de Virgílio ‘dando expressão, como a voz da própria natureza, a essa pena e a esse cansaço na esperança ainda de melhores coisas que fossem a experiência de seus filhos e em todos os tempos.’”

Retrato do artista quando jovem, James Joyce

domingo, agosto 28, 2005

Fábio e a vida de estudante – Parte 1

Tenho ido agora, sempre que posso – isto quer dizer: quando não tem cachaça, festinha pra ir, obrigações cotidianas, fome ou qualquer outra coisa que impeça – estudar na biblioteca da Católica. Tudo começou quando a idéia de cursar mestrado deixou de ser uma fantasia besta pra virar um delírio megalomaníaco: parei de apenas “pensar em fazer” e decidi encarar a montanha de livros das bibliografias - pra logo depois ter a certeza desesperadora de que aquilo tudo era só o “indiscutivelmente obrigatório”, mas que para ter uma pontinha de possibilidade de levar essa história adiante, a quantidade de títulos que preciso ler quadruplica, incluindo aí teoria do conhecimento, metodologia de pesquisa e outros assuntos básicos de que minha graduação capenga passou longe.
A última desculpa a ser vencida era a de comprar um caderno, e também esta deixou de ser empecilho há pouco tempo. Na verdade, o que fiz foi adotar uma estratégia que funcionava muito na infância: aproveitar o entusiasmo da compra de um novo material de estudo pra me animar às leituras, tomar nota, organizar “matérias”, definir roteiros e começar sabe-se-lá-deus-por-onde. Pena que, historicamente, essa estratégia nunca deu muito certo e, no colégio mesmo, lá para o segundo mês do ano letivo o caderno já estava todo largado, com metade das folhas arrancadas e com poucos rabiscos que só continham futilidades.
Do mestrado que é bom, aliás, (ou melhor, dos mestrados, porque pra mim nada é simples... mas deixa esse assunto pra lá...) não peguei nada. Com a desculpa cínica de pegar o ritmo e me entusiasmar, estou aproveitando estes dias para leituras de ócio e prazer que, apesar de essenciais, são totalmente improdutivas e - diria até, neste momento – prejudiciais, uma vez que o tempo já é escasso e a disposição menor ainda.
O mais engraçado é que livro da biblioteca, também, não li ainda nenhum. Vou pra lá só pelo ambiente – mais tranqüilo, porém menos aconchegante e convidativo à vagabundagem que minha casa – e para desde já adquirir o hábito. Metódico como sou, decidi terminar primeiro os livros que estavam pela metade antes de começar qualquer coisa (embora a tentação e a falta de disciplina sejam grandes). Eis porque me vi hoje durante três horas seguidas lendo um livro de James Joyce que me acompanha há tempos, e aí cabe um comentário pertinente:
Como se estuda? Como se faz isso? Porque eu desaprendi como se faz, se é que algum dia soube. Fiquei embasbacado pelo quanto foi difícil passar algumas horas sentado, lendo. Eu olhava pro lado, fechava o livro, mexia no celular, via as horas, prestava atenção ao povo que passava, contava quantas páginas já tinha lido, quantas faltavam para terminar o livro – e tudo isso lendo um romance! No fim da noite, já estava me sentindo com um colapso no juízo (vulgo estafa mental) e Joyce não ajudava muito, colocando aqui e acolá trechos em latim e aumentando suas acrobacias narrativas.
Pior é saber dessas histórias de gente que estuda oito, dez horas seguidas, sete dias por semana, sem descanso, com tal maratona já fazendo parte de sua rotina. É... Mestrado parece que é assim, né? Será que ainda dá tempo de se habituar ao estudo prolongado? Por via das dúvidas, amanhã creio que termino “O retrato do artista quando jovem” e vou ler “A máquina”, de Adriana Falcão, leitura água-com-açúcar que parece da melhor qualidade. Eu sei, eu sei, tem as coisas do mestrado. Mas é só por esses dias. Só pra pegar o ritmo e me acostumar à idéia... :p

(continua...)

quarta-feira, agosto 24, 2005

Reflexão em três tempos


“É legítimo que as emissoras de televisão nos atinjam com a força de ‘meios de massa’ mas que nós, apenas espectadores individualizados, não tenhamos a menor possibilidade de ‘reagir como massa’, isolados que somos por esses mesmos meios?”


“No início da estruturação das sociedades industriais instalou-se um aparelho punitivo para selecionar e adequar os indivíduos às normas. No entanto, o desenvolvimento da sociedade organizacional trouxe a necessidade e a possibilidade de implantarem-se formas de controle mais eficazes, que não gerassem tantos conflitos, que implicassem custos menores, funcionassem sem interrupções e permitissem maior previsibilidade dos comportamentos. A partir do séc. XIX pode ser identificada a ascensão dessas formas não diretas e não invasivas de controle, que dispensam a figura do vigilante ou supervisor. Elas utilizam ‘mecanismos que penetram nos corpos, nos gestos, nos comportamentos...’ (FOUCAULT, 1979, p. 150). Esses mecanismos são os controles cognitivos sobre os indivíduos. Na nossa sociedade, se está tão mergulhado em uma rede de vigilância mútua, imbricada nas relações e normas sociais, que somos todos constrangidos a nos comportarmos e agirmos de um modo determinado, internalizando certos valores, e a continuarmos agindo de acordo, mesmo longe de qualquer vigilância direta. Esse é o princípio do poder disciplinador.”


“Segundo Arrow (1974), o enfraquecimento dos laços primários dos indivíduos ocorre a partir do processo de industrialização com o tempo, demasiado longo, dedicado à organização, limitando a preservação e o desenvolvimento de outras relações sociais; a dependência salarial gera um enfraquecimento do capital social dos indivíduos, que passam a concentrar cada vez mais na organização as suas relações sociais.”


Do livro “Organizações, Cultura e Desenvolvimento Local: a agenda de pesquisa do Observatório da Realidade Organizacional”

quinta-feira, agosto 18, 2005

Um.
E o que a gente leva é o conforto de ter feliz o ausente.
Forever yellow skies.
Nem as minhas experiências, nem o meu tão aclamado bom senso. Nada me prepararia para esse aprendizado, para essa realidade que é vivência crua, é necessidade de estar. Nada. Todos os pensamentos bem criados, as ilusões falsas cultivadas em cinismo reconfortante: nada. Nessa curva volto ao início, e ele é doce como uma reflexão não-assistida, espontaneamente sofrida, como o é cada retorno.
Quem haverá de ensinar? Em que memória se perdem...?
"Forever, forever I'll be, forever holding you. "

segunda-feira, agosto 15, 2005

Everyone wants to be found

Domingo à noite, dia 07, após assistirmos ao filme “Sobre cafés e cigarros” – embora no meu caso, aqui, assistir ao filme tenha um sentido bem relativo – resolvemos seguir o caminho mais sugestivo e ir ao Burle Marx para, claro, tomar café. Dentre piadinhas infames do tipo “café forte é café com buchada”, conversamos, fumamos, rimos e ouvimos Billie Holliday. Quarta, em mais um dos nossos encontros boêmios “do bem”, Mari Durant (que por sinal já está concluindo a contagem regressiva para sua ida a Madrid) comentou que chegou a sua casa, naquele dia, e ainda ouviu alguém falar sobre Billie Holliday na televisão - e expressou sua admiração com a coincidência. Eu então disse algo que tantas vezes já ouvi: coincidências não existem. Claro, foi algo que falei mais por falar, apenas pelo prazer de dizer algo do tipo e assumir o ar grave de quem acredita em algo tão sério como a reta determinação dos fatos.
Também com Lavínia e Nathalia comentei a respeito de tudo o que tem assumido feições irrefutáveis: os ciclos, as coincidências, as ações conclusivas, a inevitável urgência dos fatos não mais ignorados e a atual ineficácia de qualquer paliativo para o que é impossível de se ignorar. Estamos todos juntos, nós que somos mais próximos e, no entanto, a alegria é incompleta. Conversamos e, no entanto, parece cada vez mais difícil saber o que acontece a cada um. O ceticismo, a aleatoriedade, o deus-dará não dão mais conta: a vida parece pedir reflexões, significados – e nos ensina.
Não se trata apenas de perder, de ter distante, de abandonar no passado, e é ruim pensar que talvez alguns entendam dessa forma. Porque não é perda: é apenas uma diluição que torna o intenso em incompleto, que transmuta o que nos rodeia de modo que, embora ainda em sua permanência aparente, nos incomoda como um corpo estranho, uma realidade morna e insuficiente, desfalcada e nova. É estar no meio de todos, em uma cidade nova, como quando fomos para São Bento do Una, por exemplo, com todas as possibilidades de divertimento, e ainda assim querer ir para casa, abatido de desgosto e desânimo. Ou ao menos, então, querer estar ali de verdade – e não como um corpo inerte que tem sua cabeça em um tempo suspenso, imaginário e irreal. Ou então é como quando se está sozinho e isso não significa nada: o aprendizado, a introspecção, as vontades, os planos, tudo zerado em pensamentos sem vontade. A unidade que prevalece nos instantes individuais parece vazia: ainda não se aprendeu a viver senão na soma.
Continuamos tomando as ruas, ainda, e talvez com a mesma freqüência. A diferença é que agora cada um parece estar em um tempo diferente, e essas novas realidades que vivemos nem sempre convergem. Por isso é que percebo alguns silêncios, faltas de assunto, comportamentos destoantes. E quando falo em nós, sei a quem me refiro e creio que quem ler estas linhas e me conhecer também entenderá facilmente. Tipo, como quando eu ligo pra Iarinha e ela imediatamente pergunta: “Onde vocês estão?” E eu fingindo que não entendo: “Como assim, Iara? Nós? Eu virei um monte de gente? Por que você acha que eu estou com alguém? A quem você se refere quando diz ‘nós’?” E ela então começa uma lista que abrange boa parte dos dez, quinze, às vezes até vinte nomes que costumam sair juntos, beber, conversar, rir, chorar – e na qual ela, claro, também está incluída. Nem sempre ela acerta; às vezes estou só mesmo. Mas ela tem razão: estamos todos quase sempre juntos. Temos essa oportunidade rara de sermos ‘nós’, ao invés de apenas ‘eu’, ou ‘eles’. E achando um, é até fácil achar os outros. Isso é precioso, com ou sem convergência de momentos. E, francamente, é também muito engraçado!

domingo, agosto 07, 2005

Tanto amar - Chico Buarque

Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela é bonita
Tem um olho sempre a boiar
E outro que agita

Tem um olho que não está
Meus olhares evita
E outro olho a me arregalar
Sua pepita

A metade do seu olhar
Está chamando pra luta, aflita
E metade quer madrugar
Na bodeguita

Se seus olhos eu for cantar
Um seu olho me atura
E outro olho vai desmanchar
Toda a pintura

Ela pode rodopiar
E mudar de figura
A paloma do seu mirar
Virar miúra

É na soma do seu olhar
Que eu vou me conhecer inteiro
Se nasci pra enfrentar o mar
Ou faroleiro

Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela acredita
Tem um olho a pestanejar
E outro me fita

Suas pernas vão me enroscar
Num balé esquisito
Seus dois olhos vão se encontrar
No infinito

Amo tanto e de tanto amar
Em Manágua temos um chico
Já pensamos em nos casar
Em Porto Rico


Para pessoas que têm o olho e o sorriso bonito, e que vivem.


Durante um bom tempo – há uns seis, talvez sete anos atrás – só havia um tipo de música que eu escutava: rock psicodélico. Lembro que, de tudo em que estive imerso nesse período, ninguém deixou uma marca tão grande de fascínio e influência em mim quanto Janis Joplin. Era triste e impressionante descobrir o desenrolar da história de alguém que, durante sua vida, teve que lidar com os problemas da falta de aceitação, compreensão e tolerância por parte daqueles que a rodeavam. Mais que isso: era tocante e brutal reconhecer, por meio de uma história contada em palavras e música, por meio de uma experiência refletida e alheia - apesar de, no entanto, ironicamente inteligível - o quanto um ser humano podia ser minado, enfraquecido em suas convicções, fragilizado em seus sentimentos e levado ao colapso emocional por uma sociedade intolerante, reta e excessivamente rigorosa em seus modos de agir e nas suas concepções do que seriam virtudes desejadas ou comportamentos condenáveis. Ainda, era inevitável acreditar em como há certas pessoas que parecem estar sempre perdidas, lutando para estabelecer convicções duradouras e buscando, quase sempre em vão, bases sólidas nas quais possam encontrar algum tipo de apoio.
Não era nem a música, o rock ou o show business que mais me atraíam, tampouco os boatos, a extravagância, a fama. Eu gostava mesmo era de ler sobre como Janis, na adolescência, costumava subir com seus amigos ao alto das torres petrolíferas do Texas e na Ponte Arco-Íris, à noite, e que, ao longo da madrugada, permaneciam lá, como marionetes, “como pequenos fantoches sobre aquela ponte monstruosa”, bebendo, ouvindo jazz e descobrindo os antigos cantores de blues. Gostava também das histórias de quando Janis trabalhava no boliche e, ao sair do trabalho, à meia-noite, pegava o carro e algumas cervejas e ia com seu amigo Jack Smith ao píer, beber e conversar durante a madrugada; ou quando saiu de casa e foi para a universidade, em Austin, e começou a cantar em bares locais, integrada à vida boêmia da cidade; ou, ainda, quando chegou a San Francisco, a capital do flower power, e foi morar em uma comunidade em Haight Ashbury, epicentro da cultura hippie.
Gosto também, ainda hoje, de ler Myra Friedman, sua assessora de imprensa, contar o último encontro das duas, quando Janis, pouco antes de sua morte, falou com incomum ternura e franqueza a respeito de seus pais e da sua cidade natal, Port Arthur, e revelou uma de suas últimas idas à igreja. Gosto de perceber a gravidade do momento e pensar em como pequenos instantes podem vir carregados de significação - uma saída para fazer compras e uma pausa em um bar, um último encontro; acreditar que uma simples conversa está repleta de subtextos; que comportamentos tão aparentes escondem questões sérias e não reveladas; que uma conversa trivial pode encobrir um instante de vital cumplicidade e pode suprir, ainda, uma urgência de compartilhar, de estar junto, de sentir-se próximo a alguém.
Janis era uma menina. Vinte e sete anos, apenas, quando faleceu. Ingênua em alguns aspectos, irresponsável e imatura em outros, magoada, ferida mas ainda esperançosa, tentando viver e disposta aos riscos que enfrentaria ao longo desta busca. Por isso procurei, para colocar aqui, uma imagem não do mito em que forçadamente a transformaram ou, pior ainda, do estereótipo pobre e datado da roqueira drogada, hippie-símbolo do sexo, das drogas e do rock and roll. Como não achei, no entanto, uma fotografia que represente bem a imagem que busco, coloquei esta, da Janis cantora, ao microfone, mas com uma sutil expressão de delicadeza – expressão da menina que foi e que construiu um mundo, uma história, uma persona, e os viu, aos poucos, desmoronar.

“A revolta começou despercebida e talvez na própria mente de Janis não tenha sido mais do que uma sombra estranha, um olhar mais demorado para o céu, uma bela noite, um poema, um perturbador arrepio da carne, tudo muito passageiro, desaparecendo com o sepultar das recordações. Talvez uma pergunta: “Por que não?” E uma resposta: “Porque.”
Enterrada viva, Myra Friedman

domingo, julho 24, 2005

Ainda sem computador.
Vontade de escrever.
O mundo virtual é excludente.


E blogs viciam.

sábado, julho 09, 2005

but it did happen

Esta idéia nunca me pareceu tão verdadeira quanto agora:

"We may be through with the past, but the past is not through with us"
Magnolia, visto mais uma vez essa semana

quarta-feira, julho 06, 2005

Sem computador. Fora do ar, fora do mundo. Out of season.
Enquanto isso, fazendo e pensando... coisas.
Ah... E rindo sozinho, correndo atrás dos ônibus, planejando conspirações e fazendo suposições estúpidas acerca do comportamento alheio - "com a calma que Bilac não teve para envelhecer".

segunda-feira, junho 27, 2005

Os tênues laços

O que significa “passado” e “rebelar-se”. Mais: o que significa aceitar. Aula prática: o que chamamos de desencontro. Pífano e pólvora. Trégua: porque a guerra mais exaustiva é a que travamos contra nós mesmos. Presença ausente e duradoura. Vanilla sky.

Pavão na neve, mar de celofane, filosofia virtual e reincidência de antigas preocupações - porque somos todos imperfeitos.


O que te faz feliz?

quinta-feira, junho 16, 2005

E agora que, para tudo isso que agora estou sentindo, não há um filme?

quarta-feira, junho 15, 2005

Você já foi peão?




Um dia a areia branca
Seus pés irão tocar
E vai molhar seus cabelos
A água azul do mar
Janelas e portas vão se abrir
Pra ver você chegar
E ao se sentir em casa
Sorrindo vai chorar

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar
De um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade
De ficar mais um instante

domingo, junho 12, 2005

Eu não consigo me abalar com os contratempos causados pelos períodos de “inverno” na capital pernambucana. Os meses de chuva em Recife, pelo contrário, são para mim dos mais interessantes – à parte, claro, os intoleráveis problemas habitacionais e sanitários que afligem boa parte da população, arranca-lhes seu patrimônio construído de papelão, zinco e palafitas e nos escancara a desolação de uma metrópole desengonçada que não aprendeu a ser grande e que se multiplicou sobre uma frágil estrutura humana de casas, ruas, coletivos, esgotos e canais. As mazelas sociais pernambucanas são como um tapa na cara, quando chove, e é com um “misto de horror e vergonha” que até o mais elitizado cidadão recifense atola-se na lama, na água suja, exposto às doenças de pobre: verme, micoses, leptospirose.
De minha parte, acho até engraçado essa situação: pessoas ricas, respeitáveis cidadãos de classe média ou simplesmente os “humildes limpinhos” arregaçando calças, segurando seus sapatos às vezes caros em uma mão, o supervalorizado guarda-chuva em outra, cuidando (em vão) para não se molhar.
Tenho, é verdade, enfrentado alguns contratempos: alguém conhece a calamidade publica que se configura na Imbiribeira – Mascarenhas de Moraes repleta de água, de ponta a ponta – quando chove? Forma-se até uma certa correnteza, os carros e ônibus criando ondas, a ressaca abatendo-se sobre a fachada das lojas e pequenas cachoeiras surgindo da agitação dos pneus daqueles que, apesar das inundações, das goteiras e de uma cidade que não se agüenta nesses dias exageradamente carregados d’água, precisam, enfim, cumprir seus compromissos, impreterivelmente. No fundo todos tem certeza da insensatez, da irracionalidade que é dar prosseguimento às rotinas urbanas, mas ninguém fala, porque há um pacto silencioso determinando que a cidade não pode parar, e então todos fingem que em Recife não se instaurou o absurdo – essa palavra tão banalizada mas aqui utilizada no seu sentido essencial. Porque é isto mesmo: nestes dias, Recife esta ilógica, desafiando a razão, quase uma piada, uma gozação – parece mesmo tiração de onda de alguém, tanta água assim e a gente precisando agir normalmente, como se não fosse nada de mais.
Como disse, tenho enfrentado, sim, situações adversas: depois de, por três dias, atolar o pé na lama até a canela, na minha impraticável vestimenta de trabalho, e passar o dia inteiro no ar-condicionado, todo molhado e com os sapatos encharcados emitindo sons indescritíveis, estava certo que adoeceria. Mas eu, ranzinza como sou, parece que gosto mesmo de chuva e ao contrario da maioria até me divirto, porque não há quem tenha conseguido tirar meu bom humor nessas horas em que vejo o céu desabando, corro pisando em poças atrás de ônibus, vejo as pessoas inconsoláveis, molhadas até a alma e tendo que trabalhar e manter a pose, etc etc. A lista de situações tragicômicas continua indefinidamente, e eu rio feito doido, alegre feito menino com essa chuva toda caindo.

sábado, junho 11, 2005

"I don't ever wanna wake up
feeling like a tourist

In this place where our bottles
Have been emptied by the shore

Conductor tell the driver stop the bus
I'm getting off, I've had enough

In this place where our bottles
Have been emptied by the shore"

domingo, junho 05, 2005

Deixa um pouco de lado tuas perfeições e fita, ao menos de longe, mesmo que indiferente, a minha sujeira. Não que eu a queira expor; não que eu a tolere. Mas fita-a, porque é uma das minhas faces mais honestas, sujas, francas. Compreende a minha decadência como um instante de fraqueza, aquela hora em que a gente esquece de fingir, perde o medo do feio, esquece o segredo e, na ânsia, o revela. Mas lembra-te, ainda, que é o que de mim pode haver de mais honesto. Dá-me este desconto, quando minhas palavras tornarem-se agressivas e eu rasgar minha postura num ímpeto, e assim minhas ações poderão ser julgadas à luz dessa certeza de que, acima de tudo, há alguém com uma vontade incontrolável de acertar, mesmo que por caminhos tortos, mesmo que perdendo o rumo ou a moderação e a sensatez nos seus atos.
Por fim, imagina, ao menos vagamente, o quão difícil é recobrar a racionalidade e perceber a exposição, o desgaste e, pior, o desproposito de tudo. Lembra disso, apenas, para entender também porque eu insisto em tentar fazer diferente, em contornar, em começar um amanhã mais limpo, puro, diferente - idas e vindas no esforço de ser pleno.

quarta-feira, junho 01, 2005

Post motivado por um não-acontecimento recente, pelas manhãs de segunda e pela musica de Buena Vista Social Club.


De como funciona a tristeza em dias de produtividade e chuva

Por sob tudo percorre um silencio, um incomodo lamento oco de pensamentos decantados no sono, renovados e fortalecidos ao despertar. O impulso que ergue é puro automatismo de compromisso e obrigação; na musica que toca para se esquecer e consolar, cada nota é a lembrança dolorida da ausência, e quase não se agüenta essa saudade inusitada que - tão múltipla! – é de tantos.
“A própria dor é uma felicidade”, houve quem algum dia dissesse... Essa falta aguda, então, talvez seja também lembrança boa, feliz sentimento que se tem pelo que se gosta. E, no entanto, dói. Porque se espera próximo o que às vezes é distante, e a saudade que sentimos muitas vezes é a frustração do inconcluso, verdadeiro apenas na ânsia e na expectativa nunca concretizada.
Na minha manhã ficou a tua mudez e tua imponência, tua independência e desapego, tua distante indiferença. Em mim, a vontade de calar-me, suavemente não ser nada, na hipótese inútil de não mover-me mais, ter todo o tempo do mundo para remoer nossa impossibilidade e, apenas na minha hora, na que eu decidir que é a certa, finalmente sarar, aberto as coisas do dia já nascido, alto, que reivindica, insistente, a minha tão rara objetividade.
Mas amanhece e a vida não espera. Nem pelos lamentos, pelas lembranças, pelas expectativas frustradas, pelo medo, pela melancólica certeza do que é inevitável... nem ao menos pelo tempo de me recompor. É segunda feira e a tristeza tem hora, uma outra que não essa: o tempo, hoje, é do trivial, do prático. É preciso sair, trabalhar, seguir com os horários, os compromissos; mesmo sem planos, mesmo inapto, mesmo naquela vontade inconsolável de não acordar, ficar quieto, ouvir mais uma musica, pensar mais um pouco, negar tudo um pouco, infantil, intransigente. Mas é segunda feira, e então mesmo que chova, mesmo com a incongruência de uma cidade que não abarca tudo que desaba nesta manhã, é uma vez mais a mesma roupa passada, o mesmo ônibus, as mesmas horas, a mesma paciência fingida. Há, no entanto, por sob tudo, o subtexto da certeza que corre fina pelos meus olhos e me aponta o que está por vir. Portanto, embora eu saiba que hoje nada se espera, haverá ainda a noite, as minhas verdadeiras horas, essencialmente inúteis, e é na necessária confusão destas que verdadeiramente me abrigo, penso um pouco e, aos poucos, cansado, esqueço o dia.

segunda-feira, maio 16, 2005

"Não fosse isso
e era menos
não fosse tanto
e era quase."

Paulo Leminski

sábado, maio 14, 2005

São múltiplos os motivos que me levam a ficar ausente deste blog, e tornou-se cansativa a quantidade de posts escritos pra falar da razão de tantos posts não-escritos. Desta vez, no entanto, o motivo é ainda menos nobre, por isso creio que vale mencionar tal explicação no mínimo inusitada: meu computador resolveu deixar de funcionar nestes últimos dias. Ou melhor: liga quando quer, às vezes faz que vai e não vai, acende uma luzinha de esperança para desistir logo em seguida e, no geral, dá sinais de que, de fato, passa muito mal.
Descartando-se todas as possibilidades que remetam a queima de peças, curto-circuito e afins, uma vez que vez por outra seu desempenho é razoavelmente normal e, enfim, consideradas friamente todas as hipóteses possíveis, só resta uma dedução lógica: meu computador, genuinamente sertanejo, um autêntico cabra da peste, produzido, vendido e transportado no calor infernal juazeirense, mantido em cativeiro na estufa que eu chamo de apartamento, sem ar-condicionado, ventilador ou brisa que o valha, não pôde com tanta chuva, umidade e frio desta temporada de “inverno” recifense e pegou um baita resfriado. Convém esquenta-lo, preserva-lo sob um bom lençol, deixa-lo uns minutos em contato com o estabilizador ligado, esquentando, fazer uma oração e apertar o botão. Com sorte ele vai. Nos últimos dias não foi. A solução foi abrir, olhar, soprar umas poeirinhas, “cismar na derrota incomparável” e colocar tudo de volta no canto. E não é que, no fim das contas, funcionou?
Convém mencionar a colaboração de Paulla que solidariamente compartilhou suas próprias experiências do tipo, contando que seu PC também tem dessas frescuras (coisa de computador de pobre, conforme deduzimos), para logo depois concluir, já via msn: “preciso comprar uma capa térmica para o meu PC.”
Sugestão anotada.

domingo, maio 08, 2005





Para quem?



domingo, abril 24, 2005

Segundo uma amiga minha, Nathalia, as pesquisas mostram que leva cerca de cinco anos até que as pessoas sejam capazes de superar uma grande perda, ou reconstruir plenamente suas vidas após o fim de um grande amor. Para mim, sem dúvida, é uma quantidade de tempo absurda, um prolongar de horas intoleravelmente triste, até que se esqueça, se supere. Sei que não é muito, mas atualmente estou assim, imerso em urgência.
Ainda bem que o amor é uma incógnita, algo que, em sua forma mais completa e intensa, eu até o momento desconheço. Assim, talvez - caso seja estritamente imprescindível - as pequenas coisas que me são preciosas possam ser deixadas de lado, com sorte, em no máximo um ou dois anos, o que, no meu atual estado de espírito imediatista, já é uma vida. O quanto não se pode mudar em um ou dois anos? O quanto se pode deixar para trás e esquecer, em tão pouco tempo?
Espero estar enganado. Espero que, para reconstruir valores, estreitar novos laços, criar novas referências e aprender a não conviver, dois anos passem rápido e sejam mais que suficientes. Porque o que aprecio me é fundamental, e é parte do que justifica cada segundo da minha felicidade escassa, repentina.

sexta-feira, abril 22, 2005

A ninguém caberia a culpa. Unicamente a si mesmo. Oferta enganosa, essa possibilidade de trocar a reclusão pela descontraída aproximação proporcionada pela recusa de qualquer seriedade. Fazer da vida uma brincadeira, de si uma caricatura e dos fatos um impulso em que tudo vale, em que a entrega pouco criteriosa e a imediata satisfação vêm à medida que se subverte a imagem pessoal e o pudor. Humor auto-depreciativo, menosprezo pelo marketing pessoal, pelas personas e imagens sociais cautelosamente zeladas... Isto tudo sendo, também, uma simples persona, como as máscaras teatrais: uma caricatura, simplificada e inegavelmente atraente - inegável atração do divertido, do estereótipo, perfeitamente acomodado na embalagem do divertimento e na promessa de nunca se ofender, mas rir e fazer rir, em seus próprios defeitos e inadequações.
Mas o estereótipo anseia por mais, em uma necessidade por algo incompreensível, indefinível. É nesse ponto, talvez, quando se lembra o quão difícil é a segurança e o conforto do afeto verdadeiro, e quando se questiona o que sustenta o vínculo quando some qualquer graça, quando o mais inibido anseio pelo que é consistente e espontâneo, completo e essencial, emerge. Ou no extremo, quando algo que existe de feio surge - não tudo aquilo que entrete, e sim o feio que incomoda, o feio estética, emocional e socialmente agressivo, incômodo.
Não resta consolo, tampouco identificação. O conforto do vínculo some, as pessoas apenas ao redor. Fica-se assim, nessa breve volta à realidade, ao menos até que haja estômago pra continuar. Estômago, tolerância e humor.
Enquanto isso... lost in solitude.

domingo, abril 17, 2005

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“Toda canção de liberdade vem do cárcere.”
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Sonhei - Lenine

Sonhei e fui, sinais de sim,
Amor sem fim, céu de capim,
E eu olhando a vida olhar pra mim.

Sonhei e fui, mar de cristal,
Sol, água e sal, meu ancestral,
E eu tão singular me vi plural.

Sonhei e fui, num sonho à toa,
Uma leoa, água de Goa,
E eu rogando ao tempo: - Me perdoa
E eu rogando ao tempo: - Me perdoa

Sonhei pra mim, tanta paixão,
De grão em grão, verso e canção,
E eu tentando nunca ouvir em vão.

Sonhei, senti, sol na lagoa
Céu de Lisboa, nuvem que voa,
E um país maior que uma pessoa.

Sonhei e vim, mares de Espanha,
Terras estranhas, lendas tamanhas,
E eu subi sorrindo essa montanha.
E eu subi sorrindo essa montanha.

Sonhei, enfim, e vejo agora,
Beijo de Aurora, ventos lá fora,
E eu cantando a Deus e indo embora.
E eu cantando a Deus e indo embora.

quarta-feira, abril 13, 2005

Silenciosamente


Como se não se pudesse perceber. Quase um fingir, naquele sentimento de que somos ainda próximos – assim como a convivência virando lentamente o consolo da presença futura, o acreditar-se presente, pra tão logo tornar-se o sumiço que só se nota na falta casual de qualquer movimento.
O conhecimento dos fatos vividos, de cada resquício de experiência mentalmente compartilhada, quando vivíamos juntos, mesmo na ausência. O riso era compartilhado, o medo era amparado no apoio, no saber-se ligado, e o choro era sempre contido por uma mão, um olhar, um quieto e mudo estar ao lado, em uma atitude de apenas “ser” em comum – e o sentir-se “sendo”, já, a felicidade e o consolo de não “ser” sozinho.
Tudo aprendido, vivido, repartido, indivisivelmente múltiplo, em existências que, mesmo por poucos momentos, unem-se, tornando-se muito mais que uma, duas ou três, em uma síntese que supera a simples soma. Porque é na outra palavra que me encontro, na outra certeza que me firmo, no sorriso estampado à frente que me alegro, em indescritível comoção que transborda. Porque nos dentes que me sorriem está o sentido, e não sou mais sozinho nesta felicidade esgarçada de momento.
Nessa intensidade dói a simples ameaça da não-proximidade, a necessidade da distância: um futuro tão mais ameaçador quanto gradativo, concretizando-se em sutileza que anula qualquer tentativa de evitar. Distância diluída em diferentes interesses, divergentes ritmos e ocasiões distintas. E justamente por percebermos o que nos une assim, tão disperso, mal podemos acreditar que escapou o momento, quebrou-se o vínculo e ficamos novamente avulsos, sem aquela identificação fraternalmente humana.
Vemos as mudanças, todas com excesso de urgência, e perdemo-nos em tantos futuros sucedendo-se na velocidade que o tempo, acelerado, nos apresenta. Atemorizados, mal podemos identificar o que tende a se perder e o que é para sempre. Asfixiados pela ambição das conquistas, inebriados pelo novo, catamos tudo que é possível ao longo dos muitos caminhos e angustiadamente pedimos... agarrados ao que nos é precioso... consistência que preserve o que nos sustenta.
Que será do nosso próximo futuro?

terça-feira, abril 05, 2005

Uma leve quebra no ritmo faz-se sempre necessário. Revendo esta semana o filme Waking life, deparei-me com uma idéia interessante. Em certo momento um dos personagens menciona o fato de que talvez não seja possível viver a vida e compreende-la, ao mesmo tempo. Certamente um pensamento inusitado, mas que faz sentido: existem momentos intensos, em que entramos diretamente em contato com pessoas, acontecimentos, experiências, e outros em que damos uma pausa para organizar um pouco estas informações. Mais do que uma forma de entendimento, no entanto, tais instantes estão, eles próprios também, impregnados de vivacidade: um processo ativo em que reconstruímos a vida com nossa marca pessoal, revivemos, recriamos nossa realidade. No fim, terminamos por alcançar uma aproximação com esta nossa realidade subjetiva, individual, em um exercício de reencontro e auto-afirmação.
Talvez por essa necessidade de reconstrução introspectiva, tenho me aproximado também, com crescente interesse, da exploração das experiências oníricas pessoais, cada vez mais fascinado pelos limites do sonho e pela compreensão da fantasia como um estado de consciência tão relevante e, diriam os mais ousados, real quanto a nossa “vida desperta”.
Não sem o risco de soar como uma piadinha a respeito do ato de explorar estados alterados de consciência, penso que todos deveriam voltar-se um pouco mais para o que sua mente comunica através de sonhos, fantasias, ou, como afirmou Breton, pelo “pensamento ditado na ausência de qualquer controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética e moral” (em sua definição de Surrealismo).
Entregando-se às descobertas que nosso subconsciente nos reserva, desvendamos o implícito dos fatos, a “terceira cor do tabuleiro de damas”.Ou não: os dias têm-se mostrado repletos de subtextos, com fatos, momentos e sensações repletos de subjetividade, incerteza, nuances.

Para ouvir: Cocoon – Bjork


P.S. A propósito: comprei o dvd do filme do David Lynch, “Mulholland Drive”. Espero em breve revê-lo e voltar, aqui, a essa história toda de universos oníricos, fantasias, surrealidade.

sábado, abril 02, 2005

Fiction.
Non fiction.

quarta-feira, março 23, 2005

A superfície macia das lembranças onde me aconchego, onde a música toca incessante, a ebriedade e o vazio de pensamentos tranqüilamente premeditados envolvem-se, quase naturais.
É isto que aqui fica.
Por ora, estarei lá, na aridez reta em que traço minhas resoluções.

domingo, março 20, 2005

Uma semana sem arriscar palavras. Enquanto isso, zappeando por blogs alheios. Brigando contra o sono para readquirir o hábito do estudo - e perdendo vergonhosamente.
Ficando entusiasmado com fotografias que ainda não tirei, e com imagens que acho que nunca vou conseguir captar.
Reaprendendo a acreditar. Selecionando bons interesses. Cultivando boas convivências e, também, alternando alguns momentos de vertigem com outros de descomprometido entusiasmo.
Sim, os últimos dias têm sido, em sua maior parte, de um agradável bem-estar. Alegres. Menos consagrados ao futuro e mais ao presente - ao menos até que se descubra a velocidade certa em que devemos nos movimentar rumo à construção do novo.

Como diria Clarice, esses dias serão descontados dos meus anos de vida. De todo modo, creio que têm sido muito bem gastos.

sábado, março 12, 2005

Um pequeno momento na vida de dois seres humanos, acompanhado com sensibilidade e beleza, que transborda em um dos finais mais bonitos e verdadeiramente românticos que um filme já teve.




quarta-feira, março 09, 2005

Dancing day

Explora que eu gosto! Paga cem reais pelas minhas manhãs, minhas tardes, minha vida. Dá-me qualquer trocado, documentado, assinado em carteira, que eu vou aonde quiser, faço os trabalhos mais árduos, ou até mesmo os banais. Empresta-me qualquer título, ou o que chamam de cargo, e assim serei digno, terei futuro, prolongarei estas horas indefinidamente e poderei enxergar um pouco adiante em meus dias, mesmo com os olhos baixos.
Tenho vergonha, é verdade... Aquele ambiente, por algum motivo que não se explica, me parece hostil. Sinto-me desconfortável. No entanto irei lá, onde dizes. Formalizarei tudo, preencherei formulários, provarei minha honra em títulos: os números do meu documento são limpos – suja só a minha testa, gotejante, farta, pingando banha.
Responderei a tudo constrangido, seguirei todos os protocolos... Só não tolerarei amabilidades! Por favor, nada de gentilezas - elas sempre me deixam embaraçado. De resto nada temerei e, ao fim de tudo, colocarei lá o meu dedão sujo de tinta, trêmulo, desajeitado, deixando um borrão que é meu nome e só serve para mostrar que minha palavra não precisa de provas, apenas de formalidades. De longe, todo dedo é igual.
Aproveita também os nossos filhos, moças e rapazes soltos, perdidos, pois precisam mesmo de algo que lhes dê futuro. Afinal gastam, muitos deles, os dias a jogar bola, ver novelas, fazer sem-vergonhices. Ainda se revoltam, veja só; cabeça vazia é mesmo oficina do diabo. Convém então ganharem algum trocado. Vivem soltos e, no entanto, há os que arranjam um futuro - têm sorte! Carteira assinada, “tique” refeição e um papel do INPS que lhes dê segurança.
Mas tem a danada da revolta... Sei até de gente que encasquetou que o mundo estava errado, que não era assim, que morria-se de trabalhar - para quê? Devem ser preguiçosos, estes... São maioria, eu sei, mas vivem calados, que não são loucos de dizerem que querem ser ricos e dividir, pois sabem que os outros, sensatos, explodiriam em uma galhofa, debochando.
Eu também tenho cá dentro os meus descontentamentos. Vejo nossas crianças, muitas delas estão na escola, já (elas sabem até desenhar seus nomes), e os rapazinhos trabalham, ganham a vida como Deus ajuda... Mas por alguma inquietação tola que desconheço, sinto aqui dentro algo que não entendo e me parece, às vezes, que não é tão feliz essa oportunidade que nos dão, esse trabalho que nos ofertam... Não que seja ganância, mas parece que o dinheiro é tanto, e tanto disso nós mesmos é que construímos...! Nessas horas até sinto vontade de juntar-me aos outros, aqueles que falam em mudança, acreditam em demasia, alimentam esperanças e revoltas... Aqui mesmo há muitos. E também os que criam histórias bonitas, apresentações que parecem pintura e música vibrante que corta a tarde quando faz calor, ecoando nos cantos, em cada viela.
Mas isso tudo é tolice, então explora que eu gosto, enquanto eu espanto essa vontade incômoda de sonhar e ganho minha vida em tua casa, em tua “firma”, e assim serei grande. A vida não me ilude nem ludibria esta certeza com que vencerei esta miséria, vitorioso - como os fortes.

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Do exército de reserva - ou estoque de homens "disponíveis", a baixo custo, prontos para serem legalmente escravizados.
E também da ilusão da oportunidade do capitalismo, que incute até mesmo nos mais sofridos a crença na superação pelos méritos e a falsa certeza de que os dias melhores dependem apenas de esperteza e perseverança - deitando às costas dos explorados, além da miséria, o peso da culpa pela situação de desamparo em que vivem.
Da revolta.
Do medo.
Do desatino.

domingo, março 06, 2005

Só para divulgar:

Agora estou escrevendo também em um outro blog, juntamente com as meninas mais viajadas do Grupo Ação. :p
É o agoraetarde.blogspot.com. Por enquanto ele ainda está visualmente pouco atrativo, mas depois a gente muda o template e deixa ele mais apresentável. :p

P.S. Agradecimentos a Mari, que teve essa idéia de juntar a gente num negócio desses, né?

sexta-feira, março 04, 2005

“A gente tem é que se lascar mesmo, Fábio. O problema é esse: a gente não se lasca!”

quarta-feira, março 02, 2005

Pulou no tempo, no vazio das horas. Corpo flexionado se contorce, suspenso, curvo, tensionado, para espalhar o ar numa brisa imperceptível. É dos membros agitados a fração daquele segundo, a perfeição daquela queda, antes que a água o engula, salgada, mole, embrulhando-se em movimentos ondulados. Pernas agitadas não tateiam o fundo, enquanto na boca resta o convite petulante: a hora, agora... Pula!
Na quietude, senta-te ao longe, nem precisa ir, é completa aqui a nossa alegria. Os barcos passam – ou será só lembrança mal-contada, fantasia de um píer? –, o horizonte vai longe, assim, do alto onde estamos, onde a cerveja é gelada e a nicotina embebeda olhos marejados. Houvesse uma câmera e dali sairia uma fotografia, mas o que sai é lembrança – e a gente vive tanto que esquece de guardar. Porque alegria, ali, não se escreve com luz - se escreve na retina de quem vê, calado... Sorriso nem chega ao rosto: dissolve-se em algum lugar lá dentro, na música que toca sem fim, única, repetida, numa atmosfera apenas de quem escuta atrás dos olhos, perto da boca que não canta, parada, e numa melancolia feliz de momento desejado, daqueles que a gente dá a vida para ter e nem percebe.
Vê a brincadeira! Naquele momento é apenas a água, e é tão feliz que ninguém mais precisa participar... Deixa os meninos brincarem, fedendo a peixe, gotejando sal, aproveitando a água um pouco suja – que seja! Deixa tudo se repetir, incessantemente: a mesma escalada para um novo salto, o alarido, a água espalhada e ressentida da brincadeira, revidando o insulto com uma força impensada que os puxa para baixo, sem sucesso. Conserva tudo ali, distante, porque a gente só precisa ver, agora, entendendo que nosso entusiasmo também cresce assim: nós todos imóveis, próximos, sorvendo o frescor gelado de uma bebida enquanto as conversas ficam em silêncio. Assim também é que podemos permanecer crianças, aspirando à beleza das águas e cristalizando este momento.
Ele pulou mais uma vez. E o outro, agora. E outro que os segue, apressado. Mas para cada um de nós não precisa mais nada, nem sequer descer até lá...
...Que o nosso pulo nos enverga, também, e ficamos suspensos, assim, à medida que se aproxima a inevitável queda.

terça-feira, março 01, 2005

Dia desses chegou um indivíduo por aqui depois de pesquisar em site de busca: malefícios do álcool.


É bom mesmo, esse danado desse google...

sábado, fevereiro 26, 2005

“Also today I experienced something that I hope to understand in a few days.”
O humano perfeito, cinco vezes obstruído, na Fundação.


É evidente que tenho escrito bem menos, nestes últimos dias. Os rascunhos se acumulam na mesma proporção em que diminui minha vontade de dizer algo. Isto talvez se deva, em parte, ao fato de que o relógio que regula o meu entusiasmo pela escrita mudou. Agora não escrevo mais à noite: todas as idéias que tenho surgem pela manhã, enquanto corro para o trabalho, e somem ao longo do dia, de modo que quando escurece só restam idéias tolas que não merecem nenhum comentário.
Não é apenas isso, no entanto. A crise do declínio do império americano – vide o filme de Arcand - insinuou-se durante o carnaval, bateu com força na quarta-feira de cinzas, persistiu ao longo dos dias seguintes e só deu trégua depois de algumas resoluções pacificadoras, reconfortantes e emergenciais, tomadas em um domingo de puta-que-pariu-pra-quê-tudo-isso-afinal.
Nada mais de choro e maledicências. Toda presepada é válida para reconquistar o ânimo e o bom humor, enquanto não se encontra, de fato, uma verdadeira motivação, a derradeira, capaz de justificar todo o resto. Algo, no entanto, teria que ser prejudicado: e foi este pequeno espaço de escritos a que agora retorno. Tudo o que pensei em dizer, nestes dias, estava diretamente ligado à necessidade de um desabafo, o que me incomodou demasiadamente. Nada de errado no uso da expressão como forma de organizar idéias, sentimentos, mas aquela necessidade do “alívio a qualquer custo”, quando se fala exaustivamente na esperança de mandar para longe os problemas, só pode trazer auto-exposição excessiva, frustração e, paradoxalmente, incomunicabilidade - esse palavrão que a gente usa pra nomear aquelas horas em que ficamos cabisbaixos, esperando em vão por uma pessoa, um momento ou oportunidade efetiva de deixar de sentir só e começar a sentir com.
Se é pra enfileirar frases gratuitas, desesperadas, degradantes ou comprometedoras, melhor calar-se. Facilita a volta. Graças a esse resquício de bom senso é assim que eu agora retorno: ainda um pouco intacto e preservando uma certa imagem social. Afinal, convém que algumas pessoas acreditem que sei o que faço, o que quero e para onde vou.

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

Amor
(João Ricardo - João Apolinário)

Leve como leve pluma
muito leve leve pousa
na simples e suave coisa
suave coisa nenhuma

sombra silêncio ou espuma
nuvem azul que arrefece

simples e suave coisa
suave coisa nenhuma
que em mim amadurece

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Arquitetura. Estética: a beleza necessária – faz tempo que não percebia certa urgência em ser bonito. Dança. Oração: um padre-nosso proferido em latim, evocando pessoas desgarradas, nas cidades, sozinhas. Sozinhas? Pessoas enlaçadas, ânsias, suores, volúpias, movimentos, coletividades (coletivos?). Cidades. Espaço. Contemporaneidade. Postais do Recife.

Ou algo como Karma pela segunda vez. Ou um show de Lula Queiroga. Ou a exposição de Pierre Verger. Ou ainda, resumindo: o porquê de eu ainda estar aqui.

...É por isto, Recife. Pelos teus postais abstratos.
Difuso como o meu carnaval

Reconheço, não sem uma certa vergonha, que me sinto pressionado por toda essa necessidade de estar excepcionalmente festivo, no carnaval. Correr atrás de blocos, subir e descer ladeiras em euforia, cantando marchinhas, dançando frevos e ritmando maracatus. Mas o que chamam carnaval nem sempre vem na hora certa do ano. Então, anda-se pelas ruas, amarra-se novos apetrechos ao corpo, bebe-se, canta-se, celebra-se o folclore, assiste-se a apresentações aguardadas. Mas e a vontade de conversar? De sentar, observar com calma as ruas, admirar as cores, os movimentos, a celebração popular...? E aquela reincidência de pensamentos inoportunos, a lembrança de uma frase, de alguém que diz a si mesma – “eu sou uma pergunta”? A diferença que reside em meses, sim, a diferença, esta que muda as palavras que ouvimos, coloca silêncios, nos torna menos empolgantes...
Carnaval de muitas lições. Aprendi que entre 2004 e 2005 existe uma diferença maior que um simples algarismo; que os olhos se acostumam às visões e as experiências empíricas iguais se tornam, aos poucos, insuficientes para emocionar; que o hábito é um fato consumado e, então, como poderia despertar maiores interesses, se o que atrai é o novo?; que não adianta: nem todo o seu esforço pode resultar em uma compreensão que não se busca; por fim, que toda baboseira cult não me abala: apenas o que emociona e é intenso pode me impressionar.
E o que é intenso não está na pretensão intelectual socialmente reconhecida e auto-referenciada de muitos. Está na intimidade com que nos ligamos às palavras, aos sons, às imagens. E é isso que busco: pessoa comum, que descansa, here, there and everywhere, quando chega da folia olindense; pessoa comum, que lê poema depois de uma noite de carnaval, às quatro da manhã... Pessoa estranha: está no livro palavras que te traduzem, em meio a tanta alegria e beleza carnavalesca.


Poemas da negra
a Cícero Dias

XII

Lembrança boa,
Carrego comigo tua mão.

O calor exausto
Oprime estas ruas
Que nem a tua boca pesada.
As igrejas oscilam
Por cima dos homens de branco,
E as sombras despencam inúteis
Das botinas, passo a passo.

O que me esconde
É o momento suave
Com que as casas velhas
São róseas, morenas,
Na beira do rio.

Dir-se-ia que há madressilvas
No cais antigo...
Me sinto suavíssimo de madressilvas
Na beira do rio.

Mário de Andrade


É, ele de novo. Mas que culpa tenho eu, se ele monopoliza todas as palavras capazes de definir cada um dos meus atuais estados de alma? Prometo que quando encontrar outro com este poder, dentre as minhas leituras recentes, trago até aqui.
Ah, e digo que sim: às vezes eu escarro versos, vomito empirismo. Mas cult é o caralho. Eu sou é difuso. E refugiado em algum canto longe da realidade.

terça-feira, fevereiro 08, 2005

Morangos Silvestres.
Bergman é genial, mesmo.
E eu não faço mais piadinhas sobre o hermetismo do diretor de Persona.




segunda-feira, janeiro 31, 2005

"O ser humano é estômago e sexo"

?

domingo, janeiro 30, 2005

Aleatórias

- 1 -

Depois da experiência passada um dia desses, ia dizer que chuva só não é bom quando é preciso sair pra trabalhar.
Mas o certo mesmo é dizer que nem quando chove o meu trabalho presta. :p

- 2 -

O que faz um sábado feliz?
Cidade alta, ladeiras, cerveja, fotografias frustradas, pontos turísticos, duas tapiocas com coca-cola, arquitetura, complexos, batuque, casas antigas, sorvete azedo, mais conversas, melancolia produtiva, beleza e estética, planos, meio-fio, montmartre, crepe, ajuda profissional?, motivação, conversas, conversas, conversas.

Bifurcação.

- 3 -

O que construímos nos nossos dias...
O que você quer ser quando morrer?

segunda-feira, janeiro 24, 2005

Anúncio

Procuram-se novos referenciais de vida. Pessoas que tenham o indubitável poder de tornar nossos atos menos sem sentido, nossas possibilidades mais concretas, nossas capacidades mais inigualáveis e a realização dos nossos sonhos mais plausível. Tais referências não precisam, para tanto, de muita consistência: basta que nos convençam. Afinal, como todas as outras, estas também deixarão, mesmo, de ser referências quando forem conhecidas a fundo e abandonarem sua condição de estereótipos para serem, enfim, humanos, com todos os seus defeitos e a sua própria necessidade de modelos a seguir.
Na falta destas, um ídolo serve. Com todas as concessões que o rótulo exige.
Artistas? De preferência. Esse negócio de ficar lendo entrevista de executivo e achar o máximo tem um quê de decadência. Políticos também são aceitos, desde que possuam algum apreço pela estética e pelo abstrato.
O que importa é a influência. O que importa é facilitar. Porque esse negócio de objetivar a vida de modo claro e consistente dá um trabalho...


P.S. A propósito: já está na hora de começar o ano, não é mesmo?

sábado, janeiro 22, 2005

I'm Only Sleeping - The Beatles

When I wake up early in the morning
Lift my head, I'm still yawning
When I'm in the middle of a dream
Stay in bed, float upstream

Please don't wake me
No don't shake me
Leave me where I am
I'm only sleeping

Everybody seems to think I'm lazy
I don't mind, I think they're crazy
Running everywhere at such a speed
Till they find there's no need

Please don't spoil my day
I'm miles away
And after all
I'm only sleeping

Keeping an eye on the world going by my window
Taking my time

Lying there and staring at the ceiling
Waiting for that sleepy feeling

quarta-feira, janeiro 19, 2005

De minha silenciosa e inconsolável ambigüidade...

É com simulada destreza que me movo através das horas. Dentre blocos de instantes desconexos retiro o mal argumento que sustenta meus passos. Incoerente é a minha forma de agir: lógica incerta encoberta pelo puro reflexo daquilo que me rodeia e é firme. Na dureza da sucessão de fatos encadeados, algo que desmente a mais livre crença infundada - aspirações se desmancham no que é cômodo, óbvio e brutalmente incisivo no homem.
Multiplicidade de incoerências maleáveis – e o que é humano sobrevive ao nó no estômago, acreditando que posso ser muitos e, ainda assim, individual em meus sonhos. Inconstância disfarçável que não se deixa espreitar: assumo muitas caras, mesmo que não sabendo mentir – tão fácil mentir quando todos aceitam a mentira, sem nervos!
No entanto, sabe-se. Eu não sou um deles. Não são roupas, não são amabilidades, técnicas, habilidades, falsas destrezas, forçosas virtudes: nada, a não ser um pacto, é capaz de omitir a velada distinção. Todo o resto é cinismo. Não tenho suas caras limpas, suas feições lineares, suas certezas futuras, sua odiada estabilidade. Por que não gritam? Serão incapazes de chorar ao menos pela única e incontornável certeza de ser? Serão também incapazes de rir um riso embriagadamente insano, patético e excessivo? Tão práticos na vida, tão retos, sem nenhuma curva, com seus problemas normais, seus defeitos normais, suas anormalidades – até essas, mesmo – tão normais?
Porque eu choro. Não aquele choro de portas cerradas, lenço na mão, lágrima enxuta com o canto do dedo: eu choro um choro público, descontrolado, que constrange o pudor subitamente em um ônibus, em uma esquina, e recusa-se a trancar em casa o seu desespero, e se o faz é com ódio, amargura e encontrando frestas por onde fugir para consolidar-se no que não se esconde. É também um choro forte, que arde as pálpebras, enfraquece os músculos e alivia a mente em doce cansaço - pretendida exaustão que inibe pensamentos, torna a expressão quieta, desabafada. E eu também rio: mas não o riso de canto de boca, de gargalhada bonita e sonora, de alegria sociável e plástica. É o riso que desfigura, lacrimeja os olhos, coloca sangue na testa e salta as veias do pescoço. Uma alegria mal-educada, exagerada e extrema.
É por tal instintiva natureza, espontânea e avulsa, que me sinto, à parte qualquer inegável privilégio, um indivíduo de pé crestado no barro, olhos baixos, certezas curvas, vaidades escassas, desejos simplórios e ásperos impulsos. No entanto sei que sou fraco – frágil, protegido, pouco sofrido e bastante agraciado pelas circunstâncias que me tornam parte de uma injusta exceção. Assim, no cerne desta contradição eu encontro, resignado, o meu papel. E quantas concessões! E quanta inibida impaciência! Mas como me faz falta, ainda, esta dureza, esta simplicidade, este pouco querer - pois sou reto e de aspecto sóbrio e, no entanto, me rasgo por dentro em contradições que são o mais puro fruto da inadequação.
Um dia houve algo no trabalho. Foi logo no início, e mencione-se que, ali, em todos os dias ganha-se um pouco em cinismo, hábito e pragmatismo. Mas houve um dia no trabalho em que uma senhora muito idosa se aproximou, cabelos armados em negra arapuca, corpo magro, feições murchas, criança puxada por um braço e a outra mão livre escondendo, suspensa, a boca balbuciante. Aproximou-se e a mim se dirigiu: falou de modo muito canhestro, inaudível, pequeno, inferior. Falou de modo tão incerto que parecia querer livrar-se de palavras que eram um fardo e, no entanto, mal as pronunciava. Inclinei-me o quanto pude, subitamente tocado pelo despertar da imediata cumplicidade que atinge, vez por outra, dois seres humanos que se compreendem, e foi com tamanho esforço e apaixonada veneração que, calmo e passivo, decifrei cada fonema proferido. E era tanta vergonha, tanta inferioridade naquela mão que segurava cada palavra, que seu corpo tremia, seus olhos se abriam em susto e seu porte ficava menor, à medida que era obrigada a repetir-me sua intenção, tão logo eu demonstrava minha absoluta incapacidade em compreende-la.
Poderia ter-lhe pedido que descobrisse os lábios, falasse mais alto, ou gentilmente tê-la induzido a aumentar seu tom de voz de modo a ser um pouco mais clara. Mas foi tal minha comoção com aquela simplicidade, aquele envergonhado e ingênuo pudor... Mais que isso: foi tamanha a minha vergonha por ter sido visto de modo superior, e maior ainda minha decepção por ver-me irremediavelmente distante e grandioso - embora tantas tivessem sido as vezes em que também me apavorei com a força das palavras e com o rosto indagante de quem me ouvia, e tantas as vezes também em que levei a mão à boca e repeti este mesmo gesto cabreiro no colégio, nas ruas e na minha vida, num irremediável constrangimento e timidez... Foi tal a minha comoção, enfim, que curvei-me o quanto pude, com total respeito e amarelo sorriso no rosto, para com esforço ouvir-lhe a pergunta.
Do alto da minha função, na minha postura forçadamente longilínea - incremento para a boa aparência que me exigem diariamente no trabalho, nas ruas, nos livros, nos dias, e que sei que não posso dar – vi uma parte daquilo a que aspiro tão distante! Um traço de simplicidade dos meus pais, da minha cidade, dos meus valores, tão irremediavelmente distantes, afogados em ambições, convívios, circunstâncias e pretensões diversas...
Senti os olhos úmidos, e uma vez mais quis pensar por que parecia que só eu era tão incapaz de resguardar-me à pública exposição, ao mostrar meus olhos brilhando pela mágoa, a tristeza e os esperançosos ideais que se frustraram na mediocridade de certas horas.
Quanto à senhora? Queria saber – mãos trêmulas - o que precisava fazer para conseguir um empréstimo de “mil real”. Disse-lhe que pegasse uma fichinha. Que mais poderia dizer? Tantas vezes eu também segurei com os dedos cada palavra, por medo, vergonha e sentimento de inferioridade diante daqueles que me olhavam! Mas ali era somente eu, minha gravata, minha distância... E ela que se dirigia à máquina, olhando-me com inestimável gratidão. Creio até que me chamou de meu filho, no seu modo muito verdadeiro de dizer obrigado.